BLOG ORLANDO TAMBOSI
O que deve caber ao Estado e ao mercado em uma economia moderna? E a quantas anda o Brasil nessa equação? Fernando Schüler para a revista Veja:
Dias
atrás li um artigo provocante de Luigi Zingales, um economista que
aprendi a respeitar. Zingales é um liberal. Um crítico duro da lógica
dos lobbies e da captura do Estado, no que se conhece como “capitalismo
de compadrio”. É também um realista. Em um trecho do artigo ele diz que
“A revolução neoliberal iniciada por Reagan e Thatcher aparentemente vai
terminando. A intervenção estatal à la New Deal está de volta”. A
partir daí, ele faz a pergunta que também me faço: o que deve caber ao
Estado e ao mercado em uma economia moderna? E a quantas anda o Brasil
nessa equação? Este ano tem eleição presidencial, e talvez essas são
questões que deveríamos nos fazer.
Se
aquela frase de Zingales é verdadeira, então andamos na contramão.
Nunca houve por aqui nada muito parecido com uma “revolução neoliberal”.
Nos anos 90, privatizamos estatais, criamos uma lei de responsabilidade
fiscal e ensaiamos uma reforma do Estado, cujo resultado talvez mais
duradouro foi a criação das “Organizações Sociais”. Implantaram-se
algumas no governo federal, entre elas o Impa, e em muitos estados (a
Osesp, em São Paulo, é o melhor exemplo que conheço). No mais, nossa
carga tributária foi de 26% a 32% do PIB, à época do PSDB, entre outras
coisas devido à expansão de programas sociais. Houve processos
importantes de modernização, mas convenhamos que passamos longe de uma
revolução neoliberal.
Um
novo ciclo de reformas veio a partir da grande crise de 2015/16. De
novo, nenhuma revolução liberal, mas avanços importantes. Colocamos um
teto na despesa pública, fizemos uma reforma trabalhista, que (pasmem)
acabou com o imposto sindical, e uma reforma previdenciária, em que,
talvez por milagre, fixamos uma idade mínima para as aposentadorias.
Mais recentemente, o país avançou em algumas reformas setoriais, como o
marco do saneamento básico, que exige competição e abre o setor de
saneamento para o investimento privado, e a lei das ferrovias, que
desburocratiza o setor e vem gerando um boom de novos projetos. Em
nenhuma delas o Estado abre mão de controlar o jogo. O que ele faz é
mudar os termos do jogo. Ajusta normas e facilita a vida de quem quer
investir.
Há
algum problema nisso? Trocar “concessões” por “autorizações”, nas
ferrovias, e exigir leilões para as empresas que vão tratar nosso esgoto
diz respeito a um debate ideológico “de fundo”, como escuto por aí, ou
são apenas ajustes finos de regulação que aumentam a eficiência na
oferta de serviços?
Precisamos
parar com a conversa fiada de que há uma contradição insolúvel entre
Estado e mercado. Mercados competitivos supõem precisamente boa
regulação. Não é disso que trata nossa legislação sobre parcerias
público-privadas? Por que raios alguém pagaria 70 milhões de reais por
uma outorga para administrar o Parque Ibirapuera, em São Paulo, se as
regras não fossem claras, se não houvesse um leilão aberto e um contrato
de 35 anos para o retorno do investimento? O papel que coube ao Estado?
Fixar regras. E o das empresas? Investir, competir, fazer a gestão.
Qual é exatamente a contradição aí?
Existem
algumas tendências no redesenho das relações entre Estado e mercado em
nosso tempo. Uma delas é a crescente especialização dos governos. Eles
inclinavam-se a fazer tudo. Administravam estradas e aeroportos, quando
não fábricas de aviões, como a nossa Embraer, mineradoras e
supermercados. Hoje descobrimos que o governo não é bom em fazer nada
disso. Aeroportos com gestão privada são melhores do que os velhos
terminais gerenciados pela Infraero, e isso não tem nada a ver com o
“Estado abrindo mão de suas funções”. São as funções do Estado que vão
se transformando. Proteger interesses difusos, criar ambiente para o
desenvolvimento, garantir equidade. Essas, e não comercializar verduras
ou prover serviços, são tarefas nobres do Estado.
Outra
tendência é a gradativa despolitização de esferas da gestão pública. É o
caso da autonomia para o Banco Central. Quem definiu bem isso foi o
ministro Barroso, dizendo que instituições como o Banco Central não
devem ser “submetidas a vontades políticas, mas a compromissos com a
Constituição e o Estado brasileiro”. Vale o mesmo para temas como
responsabilidade fiscal ou o funcionamento das agências reguladoras.
Pautas que expressam valores e objetivos sociais de longo prazo. Dizem
respeito a direitos, e não devem ficar à mercê do pequeno jogo político.
Outra
tendência é a autorregulação. A tecnologia avança, dá poder aos
indivíduos e desafia velhas instituições. Não foi assim que aconteceu
com o transporte urbano? Ainda recordo da discussão sobre se era cabível
deixar que carros sem o carimbo das prefeituras circulassem pelas
cidades transportando pessoas. Hoje há perto de 1,1 milhão de motoristas
de aplicativos, país afora, e pouca gente ainda discute sobre isso. A
chamada sharing economy representa essa tendência. Ela explora recursos
subutilizados, distribui benefícios de modo difuso e debita seus custos
sobre indústrias obsoletas. A tecnologia blockchain vem na mesma
direção. O Estado moderno se fez na ideia do controle exaustivo sobre
diferentes esferas da vida social, mas terá de dar espaços à regulação
aberta e descentralizada. Há quem se assuste com isso; há quem veja aí a
melhor promessa de nossa época.
Por
fim, vamos consagrando um princípio enunciado por figuras díspares como
Hayek e um filósofo igualitarista como Philippe Van Parijs. Ele diz que
“ninguém deve cair abaixo de um padrão mínimo de dignidade”. A intenção
aqui é clara: não é mais aceitável, em nossa civilização, que pessoas
vivam em situação de miséria. Penso nisso quando vejo os viadutos de São
Paulo tomados por famílias. Criamos um país em que o governo recolhe
35% da riqueza, em impostos, e convive bem com 13% das pessoas abaixo da
linha de extrema pobreza.
O
mundo atual assiste a uma longa aproximação entre as agendas do
liberalismo e da moderna social-democracia. Economias avançadas são
feitas de modelos mistos. Gosto de lembrar do desafio lançado por Mario
Covas, em nossa primeira eleição presidencial após a ditadura, dizendo
que o Brasil precisava de um “choque de capitalismo”. Logo ele, um
convicto social-democrata. Sua provocação permanece, até hoje, parada no
ar.
Vai
aí o maior desafio deste ano da graça de 2022. Largar o bate-boca vazio
e concentrar energias no grande debate sobre o país que desejamos. É
esse o tom que deveríamos dar à disputa presidencial. Não sei se é
razoável acreditar que isso vai acontecer, mas não tenho dúvidas de que
seria o melhor a fazer.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771
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