Antes do final do mês é plausível que milhares de “personalidades de esquerda” se juntem em dúzias de peditórios. À esquerda não faltam “personalidades”: falta noção do ridículo e falta vergonha. A crônica semanal de Alberto Gonçalves para o Observador:
A
2 de Janeiro, 31 “personalidades de esquerda” rogaram por petição “o
entendimento das forças de centro-esquerda e esquerda, visando
constituir uma maioria parlamentar e um Governo [maiúscula deles] que
tenha como propósito a aplicação de medidas indispensáveis para a
melhoria do bem-estar da população”. No dia 4, foram 100 as
“personalidades de esquerda” a reclamar “uma maioria plural de esquerda”
nas eleições, visto que, “seja qual for o futuro, só essa pluralidade
pode construir o diálogo, a alternativa e a resistência”. Escrevo a 7, e
estranho que ontem 350 “personalidades de esquerda” não tenham
produzido apelo similar. Mas antes do final do mês é plausível que
milhares de “personalidades de esquerda” se juntem em dúzias de
peditórios. À esquerda não faltam “personalidades”: falta noção do
ridículo e falta vergonha.
Uma
coisa de cada vez. Primeiro, a ironia. É interessante notar que os
apelos à união das esquerdas nem sequer conseguem unir os esquerdistas
que assim apelam. É evidente que a acumulação de abaixo-assinados traduz
ódios ou pelo menos divergências entre os respectivos subscritores.
Dado que Fulano não aprecia Sicrano, não o convida para o grupo dos
eleitos (“eleitos” é força de expressão), o que motiva Sicrano a redigir
um texto alternativo e a convidar Beltrano. Naturalmente, Beltrano
detesta Fulano e cinco integrantes da “lista” de Sicrano, pelo que, com
185 “personalidades” despeitadas, já iniciou a sua própria carta aberta,
a publicar logo que o “site” do “Expresso” ressuscite. E o prof.
Boaventura assina as cartas todas.
Depois
vem a soberba. Conforme a designação indica, as “personalidades” não
são quaisquer palermas: são palermas que se julgam ungidos de um
estatuto especial, atribuído pela política, a universidade (digamos), o
cançonetismo, o “jornalismo” ou as “artes”. Aqui não se encontram
cantoneiros, operadores de “telemarketing” ou despachantes, ofícios
“normais” que não habilitam o titular a orientar-se sozinho e muito
menos a influenciar o próximo. As massas brutas carecem de orientação.
Por sorte, acima delas paira uma elite esclarecida generosamente
disponível para orientá-las através do exemplo. Se a sra. dona Pilar del
Rio, cuja sabedoria é infinita, vota em marxistas, não cabe na cabeça
de ninguém que o Zé Luís, bancário na Trofa, arrisque fazer diferente. E
se o sr. Abrunhosa, que comete uns discos, deseja que os marxistas
preencham por completo o parlamento, seria absurdo que a Isabel de
Sousa, pasteleira em Ourém, discordasse. Igualdade sim, mas com limites.
Por
cá, os comediantes profissionais, em geral de esquerda, em geral
possuem a graça de uma torradeira avariada. Em compensação, os
comediantes acidentais são genuinamente engraçados. A lengalenga dos 100
chega a referir a necessidade de “alternativa” e de “resistência”.
Alternativa a quê, santo Deus? Resistência a quê, virgem santíssima?
Esta tropa fandanga é a pura representação do “sistema”, naquilo que o
“sistema” tem de mais bolorento e daninho. Gostem ou não (gostam,
gostam), em larga medida eles são o poder, que miseravelmente ocupam
desde 2015 e espantosamente acumulam com a devoção infantil, e algo
macabra, do Maio de 1968, dos barbudos cubanos ou dos próprios sovietes.
Ainda que usufruam de privilégios vedados a uns 98% dos restantes
portugueses, mantêm o imaginário da “luta” com a extraordinária
convicção de um vegetariano que vai na segunda dose de cabrito.
Do
alto da alucinação e do grotesco, da presunção e da pompa, estas
petições e peticionários têm genuína piada. Só perdemos a vontade de rir
quando, sob o humor involuntário, nos lembramos de que a influência e
as intenções desses bandos são os maiores sintomas do nosso imenso
atraso de vida. Dito de outra maneira: estamos em 2022. E após todas as
proezas do comunismo assumido ou dissimulado, um pequeno país castigado
há décadas pela doença colectivista, e pela pobreza, o autoritarismo e a
corrupção anexas, continua a admitir que a pertença à “esquerda”
constitui sinal de orgulho e distinção. É como se, por cima do rasto de
destruição e morte, a peste bubónica gozasse até hoje de razoável
prestígio. Quando vejo uma criatura confessar-se de esquerda, imagino-a
sempre a proclamar: “Sim, de facto considero que a acção de luta e
resistência da bactéria Yersinia pestis é o único caminho para a
consagração do ser humano na sua plenitude.” E se lhe lembramos a
devastação, a resposta não falha: “Essa não era a peste verdadeira”.
Loucura,
no sentido exacto do termo? Evidentemente. Porém, é injusto acreditar
que loucos são apenas os consumidores dos sucessivos “manifestos”, e não
os oportunistas que os assinam. Mesmo os oportunistas não parecem
regular bem, e a transformação da maluquice num negócio rentável não
confere alta automática aos malucos. Para lá do oportunismo, do cinismo e
da hipocrisia, acho sinceramente, e com imenso respeito, que a vaidade
dos esquerdistas com a esquerda que afinal escolheram reflecte psicoses
graves. Nada ali se prende com a aflição face às desigualdades (que
aliás praticam) ou as opressões (que de resto exercem), e sim com o mero
prazer de se dizerem “de esquerda”. A palavra enche-lhes tanto a boca
que a última sílaba solta-se pelas narinas, feito mostarda. Tamanha
“superioridade moral” não disfarça a inferioridade emocional, alimentada
por obsessões, tiques, transes.
As
ladainhas dos 31, dos 100 e dos 589 destinam-se ao público em geral.
Deviam ser endereçadas ao corpo clínico do Júlio de Matos. Embora
assinem inúmeras cartas, as “personalidades de esquerda” não jogam com o
baralho todo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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