Dalrymple costuma apontar que o significado de “pobreza” é alterado de modo a nunca se poder dizer que ela acabou. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Tecnocrata
tem uma dificuldade terrível em entender coisas que não cabem em
números. Ao meu ver, isso acaba implicando uma desestabilização das
sociedades menos baseadas no dinheiro. Estas são automaticamente
consideradas pobres, recebem uma injeção artificial de dinheiro e,
muitas vezes, este vai encontrar seu destino numa nova área da economia
que cresce vertiginosamente desde quando surgiu o Bolsa Família: o
tráfico. Com a criação do Bolsa Família teve a substituição do jegue
pela moto, que aumenta a capacidade de produção e é uma boa coisa, mas
me parece que houve também a explosão do tráfico. Não pretendo dizer que
não é pra ter auxílio estatal a gente carente; pretendo chamar a
atenção a efeitos ruins que o tecnocrata não costuma enxergar.
O que é pobreza?
Dalrymple
costuma apontar que o significado de “pobreza” é alterado de modo a
nunca se poder dizer que ela acabou. Ele é um médico inglês aposentado
que trabalhava no SUS de lá (o NHS) e em prisões, por isso conhece bem o
segmento social que os ingleses chamam de “pobre”, mas que ele prefere
chamar de underclass, subclasse. É gente que recebe uma espécie de Bolsa
Família e se diz “paga”, mesmo que não trabalhe. Se o Bolsa Família é
de inspiração liberal, porém, o Reino Unido tem uma forte tradição
socialista no campo da assistência social. Conforme Dalrymple conta, o
“pobre” inglês “é pago” pelo Estado e recebe ainda uma habitação estatal
já mobiliada e equipada com eletrodomésticos para morar. Os burocratas
inspecionam as famílias e dizem quem vai morar onde. Decidem tudo
burocraticamente, na acepção pejorativa da palavra. Num dos seus livros
(que são editados no Brasil pela É Realizações), ele conta o causo de
uma mãe solteira que costumava se envolver com homens violentos. Ela
pedia para mudar de apartamento para escapar de um deles, mas a
assistência social dizia que não, porque ela já estava alocada no
apartamento para o tamanho da família dela. O problema foi resolvido
quando, para resolver a questão da alienação parental (criada pela
própria burocracia), os burocratas decidiram que todos os pais teriam
direito a ficar com os filhos por um período, mesmo que fossem pedófilos
ou assassinos violentos. O pai da filha dela ficou com a criança e
matou. Aí a burocracia finalmente a mudou de apartamento, já que agora
era uma mulher sozinha.
Assim,
os “pobres” da Inglaterra levam uma vida que serviria para encher mil
programas do Datena, embora vivam em meio à fartura material. Os
“pobres” da Inglaterra são “pobres” somente por terem menos dinheiro que
alguém. Caso transformemos a pobreza em algo relativo, em vez de
absoluto, a pobreza só acabará quando todo mundo tiver a mesma riqueza.
Se todo mundo menos Bill Gates fosse tão rico quanto Gisele Bündchen,
Gisele Bündchen seria pobre até a aniquilação de Bill Gates.
O
mais razoável, para Dalrymple, seria considerar que não existe mais a
pobreza entre os cidadãos do Reino Unido. E um tema recorrente em seus
textos é como as modas intelectuais da elite têm um efeito devastador
sobre o povo. No fim das contas, eles não abasteceriam um eventual
Datena por causa de sua pobreza, mas sim por causa de sua degradação
moral, possível também em meio à riqueza.
Onde
eu quero chegar com isso? Ora, na mentalidade tecnocrática segundo a
qual todo problema tem origem na falta de dinheiro. Por que as pessoas
roubam comida? Porque não têm dinheiro? Ok. Por que as pessoas
contrabandeiam fuzis? Porque não têm dinheiro?! Por que as pessoas
compram cocaína pura traficada da Colômbia? É porque não têm dinheiro?! E
se o rico tem motivações de ordem espiritual para comprar cocaína pura,
por que temos que reduzir à economia os motivos do drogado pobre?
Eu
tenho para mim que o cheirador rico e o cracudo pobre partilham dos
mesmos valores, e que os valores explicam o estilo de vida de ambos. Já
os tecnocratas e um monte de católicos acham que toda a degradação dos
pobres advém da pobreza, isto é, da escassez de recursos materiais
necessários à sobrevivência.
Um cheirador é um cracudo com dinheiro; um cracudo é um cheirador sem dinheiro.
Riqueza sem dinheiro
Mas
uma das coisas que mais me espantam na mentalidade do tecnocrata é a
ignorância histórica. Tudo se passa como se Deus tivesse criado o Éden
com Adão, Eva, um monte de bicho e cédulas de dólar. Durante a maior
parte da história da humanidade, a riqueza vinha do solo, do trabalho
rural. Gente sem um tostão furado, mas senhora de terras férteis e de
servos, era rica. Impostos medievais como a terça e meação podiam ser
pagos “em espécie”, expressão que significava, quando ainda não existiam
cartão de crédito nem transferência bancária, pagos com uma fração da
própria produção. Pagamento “em espécie” do plantador de beterrabas era
pagamento com beterrabas.
A
própria moeda surgiu como resultado de um trabalho de extração de
riquezas da terra. E o material da moeda poderia ser fundido e guardado
em casa como poupança, seja sob a forma de joias, seja como utensílios
de cozinha (“a prata da casa”). Tão tarde quanto no século XVIII, David
Hume condenava a prática de importar porcelana do Oriente porque, uma
vez partida, a riqueza se perdia – bem ao contrário da prata da casa. As
joias de crioula usadas pelas sinhás pretas da Bahia no século XIX eram
uma poupança ostensível. As pessoas não iam a lojas com dinheiro na mão
escolher uma joia; elas amealhavam riqueza em metais preciosos e
buscavam um ourives honesto para fundi-los em artefatos. Quando as vacas
magras viessem, bastava derreter.
Desde
a Idade Média, portanto, a riqueza era sobretudo rural e com pouco
dinheiro. Com o excedente da produção do campo e o aumento do comércio,
começaram a surgir as cidades (ou burgos), com seus burgueses. A nobreza
tinha riqueza em terras; a burguesia tinha riqueza em dinheiro.
Ainda
no século XIX, na Itália já industrial, a importância da riqueza em
terras era reconhecida. Por isso a burguesia começou a se casar com
nobres falidos e assim a se nobilitar. Uma representação famosa desse
processo se encontra em Il Gattopardo, romance do príncipe de Lampedusa
transformado em filme por Visconti. A famosa frase “é preciso mudar tudo
para que nada mude” sintetiza a aliança da nobreza decadente com a
burguesia ascendente para se manter por cima da carne seca.
Uma economia diferente
Se
um grupo de liberais como Marcos Lisboa chegasse à Idade Média, seria
feito um censo para medir em dinheiro as receitas de todo mundo.
Ficariam de coração cortado ao descobrir que marqueses, condes,
viscondes e duques têm pouco dinheiro; que os camponeses vivem com menos
de um dólar por dia. Enviariam um relatório a entidades internacionais
revelando a situação de extrema pobreza dos nobres medievais. Por outro
lado, os judeus, párias privados do uso da terra, condenados à vida
urbana, apareceriam como grandes ricaços e concentradores de renda. Um
Bolsa Família levaria dinheiro aos campônios e nobres, às expensas dos
burgueses. Mas que diabos o povo do campo faria com o dinheiro?
Ao
meu ver, é possível que seja mais ou menos isso o que acontece com as
desigualdades regionais do Brasil. A economia da maioria da população
nordestina (que não mora nas capitais) se assemelha à economia medieval.
Os liberais puxam os cabelos lastimando o pouco dinheiro que o
nordestino rural tem, mas não considera o baixíssimo custo de vida que
um pequeno proprietário rural tem. Aí pega o dinheiro dos centros
urbanos e despeja no sertão. Pra quê?
Bom,
as coisas que o campo arcaico não consegue comprar são os bens
tecnológicos importantes para a produtividade – como moto, celular,
internet, trator – e droga. Veja-se por exemplo esta notícia de um
negócio ilegal flagrado pela Polícia Rodoviária Federal: no interior da
Bahia, um inadvertido comprou com um porco gordo, pela internet, uma
moto roubada. Isso é economia brasileira. No dia em que um tecnocrata
entender que esse tipo de operação com pagamento em espécie é uma coisa
normal na segunda maior região brasileira, talvez possamos pensar em
programas melhores de transferência de dinheiro.
A
cocaína é produzida fora do Brasil e só entra à base de dinheiro. Se
hoje há crack em qualquer rincão rural do país, isso só foi possível com
a chegada do dinheiro a esses rincões. Isso aconteceu com os programas
liberais de transferência de renda, que mexeram nessa economia arcaica.
Repito que a chegada do dinheiro não implica que todo mundo vá comprar
drogas -- há quem compre bens de tecnologia, que também só chegam com
dinheiro. Mas precisamos abandonar essa mentalidade segundo a qual
dinheiro é a melhor ou a única métrica de sucesso humano.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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