Como disse Chesterton, há aversão à existência de um espaço pessoal, íntimo e inalcançável, capaz de sobreviver às mais nefastas ou insossas ideologias. Maria Clara Machado para a Gazeta do Povo:
Quando
a vacinação contra a Covid-19 ainda caminhava a passos lentos ao redor
do mundo, o “cancelamento” do Natal em dezembro de 2020 foi amplamente
repercutido e comentado tanto nos países onde a festa do nascimento de
Cristo é celebrada entre flocos de neve de verdade como onde o clima do
final do ano remete ao Festival do Sol Invicto, a festa pagã que
originalmente marcava o solstício de verão.
Parece
óbvio, afinal de contas, que, ao menos para cerca de 31,4% do planeta -
percentual estimado de cristãos segundo dados do Pew Research Center de
2017 - o feriado de 25 de dezembro é mais do que a data festiva mais
rentável do ano: suas raízes estão fincadas pelo Ocidente. Ecoando o
historiador britânico Tom Holland, segundo o qual toda civilização
ocidental “nada em águas cristãs” - desde seu corpo jurídico básico à
noção de direitos humanos -, pode-se dizer que o inverso também é
verdade: as raízes do Ocidente estão fincadas no Natal.
Ignorar
esta realidade requer que se cerre os olhos para as gigantescas árvores
de Natal erguidas nas principais capitais europeias anualmente,
enquanto teatros e praças exibem peças, cantatas e toda sorte de
decorações dedicadas à data. Não foi à toa, portanto, que o documento
interno da Comissão Europeia - instituição independente que aplica as
resoluções da União Europeia - vazado no final do mês de outubro causou
tanto furor. O guia recomendava que os funcionários evitassem “pressupor
que todos são cristãos” e, nas mensagens e comunicados internos
substituíssem a saudação “Feliz Natal” por “Boas Festas”, além de evitar
nomes associados ao Cristianismo como “Maria” e “João”.
A
reação foi enérgica e imediata a ponto de, no dia 1º de dezembro, a
comissária de Igualdade da CE, Helena Dalli, anunciar a suspensão da
diretriz, afirmando que a versão divulgada "não é um documento maduro e
não preenche todos os requisitos de qualidade da Comissão". "As
recomendações claramente precisam ser mais trabalhadas. Portanto, retiro
as recomendações e trabalharei mais nesse documento", concluiu a
comissária de Igualdade, em breve comunicado. Ninguém menos do que o
Papa Francisco havia reagido ao texto, classificando-o como um
“anacronismo”, fruto de uma “laicidade liquefata”. Em mais uma de suas
críticas às ideologias modernas que passou despercebida pela imprensa, o
Pontífice foi além: remeteu a iniciativa às ditaduras do nazismo e do
comunismo.
Os “cancelamentos” do Natal
Não
é a primeira vez na história que o Natal incomoda a ponto de ser alvo
de tentativas de “cancelamento”; o que pouca gente imagina é que os
pioneiros deste movimento foram os próprios cristãos. Quando a Reforma
Protestante aterrissa na Inglaterra do século XVII, as festividades
natalinas são proibidas por puritanos, incomodados com as raízes pagãs
da tradição.
“A
preocupação com isso [a forma correta de celebrar o Natal] é, em si,
uma tradição muito cristã. Mas quando você chega à Inglaterra reformada,
os puritanos em particular estão muito, muito ansiosos sobre a maneira
como eles veem a Igreja Romana como tendo falhado em arrancar os
espinhos do paganismo. Existe a tradição de generosidade no Natal que,
sem dúvida, surge da maneira como os cristãos entendem seu dever para
com os pobres. Mas, nessa época, o sentido já foi misturado e estes
grupos se preocupam se essas celebrações não acontecem por motivos
cristãos, mas sim por motivos pagãos”, explica Holland.
Apesar
de todos os esforços, o Natal continuou dentro das casas: em fevereiro
de 1656, o ministro puritano Ezekiel Woodward admitiu, com amargor, que
“o povo continua apegado a seus costumes pagãos e abomináveis
idolatrias”. Foi somente quando o rei Carlos II subiu ao trono em 1660
que a festa do nascimento de Cristo - com suas árvores, guirlandas e
duendes no pacote - voltou à esfera pública, garantindo ao monarca o
apelido de “o Rei do Natal”. Do outro lado do oceano, comemorar o Natal
“seja pela abstenção do trabalho, festa ou qualquer outra forma” segundo
a lei do estado americano de Massachussetts, colonizado por puritanos,
podia render uma multa de 5 xelins. A festa só se tornaria um feriado em
1856.
A
próxima tentativa de “cancelamento” no Natal começaria, enfim, a se
assemelhar aos esforços contemporâneos: o período do terror que sucedeu a
Revolução Francesa traria uma guerra declarada às festividades
religiosas no espaço comum, que deveriam ser substituídas pelo culto à
razão. Algumas décadas depois, seriam os nazistas que fariam o esforço
de se livrar do Natal por sua evidente origem cristã e judaica. Desta
vez, contudo, o movimento foi mais sutil: ao invés de proibir a festa, a
propaganda hitlerista tentou reescrever a história europeia,
ressaltando e idealizando as culturas germânicas pagãs e excluindo a
herança cristã. Mulheres assavam biscoitos em formato de suástica, a
Estrela de Belém se transformou na “roda do sol de Odin” e o Papai Noel
ganhou as feições do deus germânico Wotan.
Na
mesma época, no continente vizinho, o Natal era expurgado da
recém-nascida União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Como
uma festa cujo intuito é celebrar a união familiar, a tradição e a
religião - o "ópio do povo" de Karl Marx -, o nascimento de Cristo era
uma enorme pedra no sapato da "ditadura do proletariado" e seu ateísmo
militante. Para não perder por completo o apoio da população, contudo,
era preciso agir com estratégia. Quando os soviéticos tomaram a Hungria,
em 1948, escolheram o dia seguinte ao Natal para prender o arcebispo
local, e, no ano seguinte, substituíram a data por uma celebração da
figura de Josef Stálin. Na Rússia, a exemplo da Alemanha, o próprio
Stálin incentivaria a comemoração de um Natal descolado do Cristianismo,
com figuras da mitologia local, mesmo depois de denunciá-las como
“aliadas da Igreja”.
Da proibição ao apagamento
O
Natal sobreviveu ao nazismo, ao comunismo, ao fim da URSS e chegou são e
salvo ao século XXI, ainda que com o mesmo potencial para causar
incômodo. O documento politicamente correto da União Europeia pode ser
visto como a ponta do iceberg de uma controvérsia nascida nos Estados
Unidos e que tomou proporções internacionais.
Desde
o começo dos anos 2000, o uso da expressão "boas festas" versus o bom e
velho "Feliz Natal" está no cerne de discussões acirradas que, nos EUA,
já alcançaram os palanques. Em 2005, o apresentador da Fox News Bill
O'Riley publicou o livro "A Guerra no Natal: Como a conspiração
progressista para proibir o feriado sagrado cristão é pior do que você
pensava". A obra versa principalmente sobre casos de escolas que, em
nome da "pluralidade", estariam evitando símbolos cristãos durante o
período natalino. Ainda que contendo informações inverídicas, exageradas
ou seletivas - algumas escolas foram falsamente acusadas de proibir as
cores verde e vermelho, por exemplo, enquanto governadores republicanos
que optaram por "boas festas" passaram incólumes -, as histórias
repercutiram no canal.
Naquele
ano, a rede de supermercados Wal-Mart "encorajou" seus funcionários a
utilizarem "boas festas" no lugar de "Feliz Natal", enquanto a Casa
Branca ocupada por George W. Bush também optava pela saudação genérica
em seu cartão de final de ano. Seria, contudo, o presidente Barack Obama
quem, em 2016, chamaria a atenção por desejar "boas festas" via
Twitter, na época em que marcas como Barnes & Noble, Best Buy,
Victoria’s Secret e Starbucks evitavam menções à festa religiosa em seus
catálogos de dezembro, preferindo referências ao inverno ou à "harmonia
social". Tudo isso serviu de armamento para que o então candidato à
presidência Donald Trump afirmasse, em um comício em Wisconsin, que
traria o "Feliz Natal" de volta.
Assim,
ano após ano, a celeuma de grupos progressistas com o Natal ganha um
novo capítulo. Ainda em 2016, a American Civil Liberties Union (ACLU) em
Indiana entrou com uma ação em nome de um residente da cidade de
Knightstown que se opôs a uma cruz exibida no topo da árvore de Natal
oficial do município. A cruz foi removida. “Enquanto o próprio governo
não promover a doutrina religiosa, essas celebrações são inteiramente
constitucionais”, afirmou o representante do grupo.
O
argumento da ACLU é, na verdade, extremamente revelador - e essencial
para que se compreenda o movimento da União Europeia. "O cerne deste
problema é a visão do liberalismo secularista que se tornou a
mentalidade dominante das democracias ocidentais. Com a desintegração da
Cristandade medieval e o surgimento do Estado nacional moderno como
gestor da violência, há a promessa de segurança em troca da perda de
algumas liberdades. Há, então, um enfraquecimento das identidades
pessoais na esfera pública, e a religião é relegada ao espaço privado.
Nasce essa ideia de que você pode professar a religião que quiser, desde
que seja dentro da sua casa. Isso surgiu para pôr um fim às guerras
religiosas e teve efeitos positivos no sentido de evitar o absolutismo,
mas o laicismo também tem seus excessos", explica o historiador Alex
Catharino, pesquisador do Russell Kirk Center.
"Um
destes problemas é a ideia de que a ação pública, cuja finalidade é a
justiça, deve promover uma equalização a qualquer custo. Na prática,
você cria um achatamento, destroi a diversidade das culturas locais e a
própria identidade da sociedade ao promover uma neutralidade
impossível", explica. "O que esses burocratas não entendem é que o
Estado é laico, mas é composto por pessoas religiosas - e não é como se
na esfera pública elas fossem se despir de tudo. O medo de ferir o
diferente pela mera menção ao Natal é perigoso porque caímos na tentação
dos regimes totalitários de tentar reescrever a história", explica
Catharino.
A
reflexão do historiador ecoa a resposta do Papa Francisco à proposta
europeia: "A União Europeia deve tomar em mãos os ideais dos Pais
fundadores, que eram ideais de unidade, de grandeza, e ter cuidado para
não dar lugar a colonizações ideológicas. Isto poderia levar à divisão
dos países e ao fracasso. A União Europeia deve respeitar cada país como
ele está estruturado dentro, (...) e não querer padronizar. (...) É por
isso que o documento do Natal é um anacronismo".
Por que o Natal incomoda tanto?
À
parte do “multiculturalismo” amorfo expresso no documento da Comissão
Europeia, o universo “woke” tem sua própria cruzada contra o Natal: uma
pesquisa rápida revela dezenas de artigos sobre filmes de Natal
“problemáticos” que deveriam ser “evitados” por jovens desconstruídos.
Entre eles, o clássico “A Felicidade Não Se Compra” (1946), de Frank
Capra, cujo protagonista George Bailey seria um homem “abusivo e
manipulador” - uma lista de reclamações que parece vir não de jovens
usuários do Twitter, mas da encarnação do ranzinza Ebenezer Scrooge, do
clássico “Um Conto de Natal” de Charles Dickens (“Que vá para o diabo o
Feliz Natal!”, diz o velho).
“O
problema com o Natal, como diria G. K. Chesterton, é que ele é um sinal
de contradição para quem pensa em tecnologia, riqueza e consumo. É a
festa na qual a sociedade é confrontada com um menino frágil que era
Deus. O ‘Feliz Natal’ é uma lembrança de que o mundo não é uma marcha
inexorável rumo ao progresso, e é o momento de nos voltarmos à nossa
pequenez. É quando conservadores e liberais simplificam em achar que é
só um problema de Estado: o problema é a cultura”, reforça Catharino.
De
fato, talvez poucos pensadores tenham exposto de forma tão clara o
incômodo inerente à festa que, mais do que qualquer outra, clama pelo
retorno ao familiar. "O período natalino é doméstico; e por esta razão a
maioria das pessoas se prepara para ele apertando-se em ônibus,
esperando em filas, correndo pelos metrôs, comprimindo-se em casas de
chá, e imaginando quando ou se vão chegar em casa algum dia”.
“Exatamente
antes do grande festival do lar, toda a população parece ter se tornado
desabrigada. É o supremo triunfo da civilização industrial que, nas
enormes cidades que parecem ter casas em excesso, há uma desesperada
falta de moradia. (...). Tenho em mente o contrário da irreverência
quando digo que o único ponto de semelhança entre eles e a família
natalina arquetípica é que não há espaço para eles na estalagem. Ora, o
Natal é feito de um belo e intencional paradoxo; que o nascimento do
desabrigado deve ser comemorado em todos os lares”, escreveu Chesterton,
desnudando o motivo pelo qual não é de se surpreender que uma geração
afeita à individualidade e ao externo tenha perdido o apreço pela
comemoração.
Por
trás da Cortina de Ferro que Chesterton viu ser erguida no oriente,
sabia-se que o Natal incomodava por sua relação íntima com a religião e a
tradição. Há, no fundo deste desprezo, um elemento comum aos burocratas
e aos “canceladores” de plantão, também identificado e descrito pelo
ensaísta: a aversão à existência de um espaço pessoal, íntimo e
inalcançável, capaz de sobreviver às mais nefastas ou insossas
ideologias: “que exista uma noite que as coisas brilhem desde dentro: e
um dia que os homens procurem por tudo que está enterrado em si mesmos, e
descubram – no lugar onde ele está realmente escondido, por trás de
portões trancados e janelas cerradas, por trás de portas três vezes
trancadas e aferrolhadas – o espírito de liberdade".
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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