Escassez e inflação: a reação à covid-19 tornou a economia americana mais parecida com a de um país de Terceiro Mundo. Gabriel de Arruda Castro para a Oeste:
As
consequências econômicas mais visíveis da pandemia (e das medidas
adotadas em nome do combate à covid-19) foram o fechamento do comércio e
a restrição ao direito de ir e vir. Mas, nos últimos meses, uma
consequência mais profunda e preocupante também começou a ser notada: a
escassez de produtos nas prateleiras. O fenômeno é global, mas tem
chamado mais atenção em países pouco acostumados com o desabastecimento,
como os Estados Unidos. Sim, o problema não poupou nem mesmo a economia
mais próspera do planeta.
Um dos
(muitos) vídeos que se espalharam pelas redes sociais mostra corredores
inteiros de um supermercado preenchidos com cadeiras dobráveis. Era uma
tentativa de disfarçar a ausência de produtos.
As
interrupções na cadeia de produção tiveram início ainda no começo de
2020, quando muitas empresas chinesas fecharam as portas temporariamente
sob ordens do governo comunista. A justificativa era o enfrentamento à
propagação da covid-19. Conforme o restante do mundo também colocava o
pé no freio — justificadamente ou não —, as demandas ficaram reprimidas.
Mas, agora, com a reabertura em países como os Estados Unidos, a
economia se reaqueceu de vez e os consumidores voltaram a comprar. O
problema é que, com o atraso provocado pela fase mais grave da pandemia,
houve uma sobrecarga na cadeia de distribuição, que se aproximou do
colapso.
As
consequências da pandemia sobre a logística da economia global vieram
em ondas distintas. A mais recente tem sido sentida pelos consumidores
americanos às vésperas do período mais movimentado para o comércio —
entre a Black Friday, no fim de novembro, e o Natal.
Falta
um pouco de tudo: de microchips necessários para a montagem de veículos
(o que causou o fechamento temporário de fábricas, inclusive no Brasil)
a mármore para a fabricação de lápides. Na lista, também estão
brinquedos, eletrônicos, utensílios para cozinha, itens de decoração,
calçados e roupas.
O
efeito-dominó nas indústrias globais, sobretudo na Ásia, gerou atraso
nos pedidos de insumos e de peças essenciais para fabricantes de
produtos mais complexos. Além disso, milhões de mercadorias que já
chegaram à costa americana estão parados, dentro de contêineres, devido
ao acúmulo da demanda. O problema tem levado governantes e empresários a
repensar os modelos de produção e importação.
O lado ruim da globalização
A
escassez nos mercados americanos é fruto do delicado equilíbrio da
cadeia de comércio global. A globalização econômica criou oportunidades
mundo afora: por causa da mão-de-obra mais barata, tornou-se mais
rentável para algumas montadoras americanas e europeias produzir carros
no México, montar celulares na China ou fabricar sapatos no Vietnã. Com
uma maior confiabilidade no transporte dos produtos e da matéria-prima, a
necessidade de grandes estoques caiu drasticamente. O princípio das
entregas “Just-in-time” (algo como “Em cima da hora”) permitiu que as
empresas americanas e europeias cortassem significativamente seus custos
com depósitos e armazéns, o que empurrou os preços para baixo.
Pelo
cálculo econômico simples, a importação faz sentido: os consumidores
podem comprar esses produtos a preços menores do que se a produção fosse
100% nacional. Esse é um dos argumentos clássicos do economista Adam
Smith, um dos principais pensadores do capitalismo. Mas e quando um
evento inesperado afeta essa cadeia global? O celular fabricado na China
pode ser mais barato, mas o que acontece quando a ditadura chinesa
define que as fábricas precisam fechar as portas por causa do
coronavírus? Esta é uma lição que o consumidor americano está aprendendo
agora.
Os
milhares de contêineres que têm se acumulado nos portos dos Estados
Unidos geram um aumento nos custos, já que os proprietários desses itens
precisam arcar com as taxas de armazenamento.
Esta
é a história resumida: a pandemia gerou escassez na produção, seguida
por gargalos na cadeia logística — o que, por sua vez, também gerou
escassez. E a escassez leva à inflação. Entre outubro de 2018 e outubro
de 2019, o aumento médio nos preços foi de 1,2%, segundo o governo
americano. Entre outubro de 2019 e outubro de 2020, passou para 4,4%.
Entre outubro de 2020 e outubro de 2021, o índice alcançou 6,2%.
E
a inflação é alimentada também, no caso americano, pela “generosidade”
estatal. Boa parte dos países adotou algum tipo de auxílio financeiro
durante os meses mais agudos de pandemia. Mas, nos Estados Unidos, a
administração de Joe Biden ampliou e estendeu o benefício. Uma família
de baixa renda que tenha três crianças com menos de 6 anos de idade, por
exemplo, terá recebido ao fim de 2021 um auxílio total de US$ 10,8 mil
(aproximadamente R$ 60 mil). Agora, o governo quer prorrogar o auxílio
por pelo menos mais um ano. “Ainda que representem um alívio temporário,
os auxílios emergenciais e estímulos diversos contribuem
invariavelmente para a expansão da base monetária”, afirma Allan Gallo
Antonio, analista do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica. Com mais
dinheiro circulando, a consequência inevitável é a desvalorização da
moeda — o que significa aumento de preços.
O
auxílio financeiro tem outra consequência indireta: a redução na oferta
de mão-de-obra. Para as pessoas que trabalhavam por um salário baixo,
ou apenas em meio período, o emprego deixou de ser tão atrativo. Isso
também ajuda a explicar o gargalo na cadeia logística. Muitas empresas
têm tido dificuldade de encontrar operadores de máquina e motoristas de
caminhão, por exemplo. E o problema se repete em outros setores da
indústria. País afora, restaurantes de fast food continuam funcionando
apenas com o drive-thru, já que não encontram funcionários suficientes
para atender os clientes dentro da loja. Se quiserem atrair mais
funcionários, eles provavelmente terão de elevar o preço dos salários.
Isso tende a empurrar o preço dos produtos para cima — alguém precisa
pagar a conta. Resultado: mais inflação.
Logística delicada
Nas
últimas décadas, o aumento crescente do chamado “outsourcing” (a
terceirização de parte ou toda a produção) para fora dos Estados Unidos
respondia a um fato imutável da natureza humana: nós gostamos de comprar
coisas mais baratas. Existe até uma razão do porquê alguns dos bonés
“Make America Great Again” foram fabricados na China. Mas, em parte
devido à pandemia, muitos governantes e empresários têm debatido que o
caminho mais barato nem sempre é o mais desejável.
A
única certeza para o período pós-pandemia é que o comércio global não
será o mesmo. Em um estudo publicado pela Escola de Negócios da
Universidade de Harvard, o professor Willy C. Shih
previu: “Os fabricantes em todo o mundo estarão sob maiores pressões
políticas e competitivas para elevar sua produção doméstica, aumentar o
emprego em seus países de origem e reduzir ou mesmo eliminar sua
dependência de fontes que são percebidas como arriscadas”, diz. Ele
afirma ainda que o uso de estoques reduzidos será repensado, agora que a
cadeia global de distribuição se mostrou falível.
Com as queixas frequentes de consumidores sobre a escassez, até a Casa Branca vem tentando explicar a situação. Em sua página oficial,
a Presidência americana divulgou um relatório argumentando que a falta
de produtos é temporária — e fruto da recuperação econômica. “Reiniciar a
economia após uma pandemia e uma recessão não foi e não será simples”,
diz o texto. “Centenas de milhares de pequenas e grandes empresas
precisam reabrir, milhões de trabalhadores dispensados precisam
encontrar novos empregadores e os fabricantes precisam trazer de volta
as linhas de produção paralisadas durante a pandemia. Essas mudanças
levam tempo.”
Mas
o que os governos poderiam ter feito para evitar a escassez causada
pelos problemas na cadeia logística global? Neste caso, muito pouco,
segundo o professor de Economia da Universidade de Brasília Roberto
Ellery. “É pouco provável que uma política pública tivesse evitado essa
quebra na produção”, afirmou. “Isso teria de envolver controle de
atividades durante a pandemia, o que é complicado mesmo em ditaduras
como a China”. Ou seja: o remédio poderia sair pior do que o problema,
já que o aumento do controle do Estado sobre a cadeia de produção tende a
gerar distorções ainda maiores.
Para
Ellery, o que os governos podem (e devem) fazer é atacar algumas das
consequências do caos logístico global. “O que podia ter sido feito era
reduzir os efeitos negativos da quebra da produção em outras variáveis
econômicas, especialmente na inflação”, diz. Ellery acredita, por
exemplo, que o Banco Central reduziu excessivamente a taxa de juros sem
adotar medidas mais rígidas de controle dos gastos públicos. A taxa de
juros, aliada a um nível elevado de despesas públicas, tende a estimular
o aumento dos preços.
Olhando
para o horizonte a longo prazo, alguns governos têm planejado reduzir a
dependência de importações, sobretudo da China. A própria eleição de
Donald Trump, ainda em 2016, foi um passo nessa direção. Mais
recentemente, a Austrália, por exemplo, tem dado demonstrações
explícitas de que pretende se afastar dos chineses. O Reino Unido, sob o
comando do primeiro-ministro Boris Johnson, lançou no ano passado um programa para aumentar a capacidade nacional no setor de medicamentos e insumos — e, assim, aumentar a autonomia nacional nesse setor.
Algumas
empresas têm ido na mesma direção. Em março deste ano, o Walmart (maior
rede de mercados dos Estados Unidos e maior empregadora privada do
país) anunciou
um plano para investir US$ 350 bilhões em produtos originários dos
Estados Unidos. A empresa afirmou que a iniciativa vai ajudar a
preservar 750.000 empregos americanos. “Estamos trabalhando para
investir em produtos que sustentem empregos americanos”, afirmou um
comunicado da companhia. Na realidade, a explicação é mais óbvia: os
problemas de abastecimento acenderam um sinal de alerta na companhia e
forçaram a empresa a buscar alternativas para reduzir a dependência de
itens importados, sobretudo os da China.
Hoje,
segundo o Walmart, um terço dos itens vendidos em suas lojas americanas
vem de fora do país. Mas, dependendo de como a conta é feita, os
números são bem diferentes. De acordo com a Aliança Americana pela
Manufatura, cerca de 80% dos fornecedores da rede de supermercados estão
na China.
Mas
nada vem de graça. É provável que a escolha do Walmart implique aumento
de preços e, potencialmente, uma redução na variedade de alguns
produtos. Será preciso tempo para avaliar como o consumidor reagirá a
essa mudança.
Oportunidade para o Brasil?
O
Brasil também tem sentido os efeitos da pandemia sobre uma economia
globalizada. A alta da inflação, por exemplo, é em parte uma
consequência das travas no comércio global e da necessidade de injeção
de recursos, por parte do governo federal, para amenizar os efeitos das
restrições motivadas pela pandemia.
Mas
talvez essa crise também permita uma reorientação do comércio exterior
brasileiro. Geograficamente mais próximo dos Estados Unidos e de parte
da Europa Ocidental, com uma economia mais aberta e preços atrativos
graças à desvalorização do real, o Brasil pode, em tese, tirar proveito
do novo cenário. Investidores em busca de alternativas à dependência da
China talvez encontrem no país um terreno promissor.
Para
Allan Gallo Antonio, a grande dúvida é se o Brasil tem uma “matriz
institucional” preparada para ocupar, pelo menos em parte, a lacuna
aberta pela redução da credibilidade chinesa. Um sistema regulatório
claro e eficiente, estabilidade política e, sobretudo, previsibilidade
jurídica são fatores que podem tornar o país mais atraente ao capital
estrangeiro. Será que o Brasil está pronto? Gallo Antonio responde: “As
respostas para essa avaliação serão fundamentais para definir se o
Brasil conseguiria tirar vantagem do movimento de desconfiança da
China”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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