POLITICA LIVRE
As sessões de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da tese do marco temporal para ocupação de terras indígenas foram marcadas por citações recorrentes ao caso Raposa Serra do Sol, cujo acórdão foi responsável por reacender a discussão sobre a existência, ou não, de data-limite para que as comunidades indígenas reivindiquem a posse sobre terras.
Embora a decisão naquele momento, em 2009, tenha sido favorável aos povos originários, os representantes de setores agropecuaristas foram os que mais fizeram referências ao caso, com citações diretas ao voto do ministro-relator, Carlos Ayres Britto, nas sustentações orais em defesa do marco temporal.
Os argumentos do ministro defendem a existência de marco temporal na data da promulgação da Constituição da República, em 5 de outubro de 1988, porém, com uma série de salvaguardas favoráveis aos indígenas. Em entrevista ao Estadão, Ayres Britto falou sobre os meandros do seu voto revivido 12 anos após a discussão em plenário. Para ele, a decisão alcançada naquele momento foi um divisor de águas, pacificador, claramente favorável aos direitos indígenas e mirando a reparação histórica.
O senhor falou que o marco coloca “uma pá de cal nas
intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de
ocupação de área indígena”. O que isso quer dizer de forma objetiva?
De forma objetiva, para que a questão indígena não fosse uma questão
sempre em aberto, gerando conflitos, vias de fato e violência, decidimos
aceitar que o marco temporal foi esse. Quando a Constituição disse
sobre “as terras que ocupam”, nós nos louvamos na semântica da
Constituição para chegarmos a uma conclusão, com as salvaguardas que eu
estabeleci em favor dos índios. Se eles não estivessem no dia 5 de
outubro na ocupação de determinada área por impossibilidade física, por
efeito de esbulho, ameaça, violência e coação. A vontade interpretativa
que nós respiramos foi essa de enxergar na Constituição uma vontade
firme, objetiva, forte, de favorecimento das comunidades indígenas.
O senhor avalia que a sua preleção durante o julgamento foi deturpada para atender a interesses pessoais?
Eu recebo isso com estranheza, porque o que nós fizemos ali, por um
placar expressivo, foi reconhecer a dignidade das nossas populações
indígenas, com aquelas salvaguardas que fizemos. A demarcação seria
sobre formato contínuo, não tipo queijo suíço, não fragmentado. Era
preciso evitar o etnocídio. Tivemos o cuidado de dizer que não há povos
indígenas, embora a imprensa use essa expressão, porque só há um povo
brasileiro. A Constituição, quando fala dos índios, fala em comunidades e
populações indígenas, não há nações indígenas, a nação é brasileira. A
Constituição não falou de territórios indígenas, falou de terras, que é
uma expressão sociocultural, produtiva. A palavra terras tem um
significado sociocultural antropológico, ao passo que território tem um
significado político e só há um território, que é o brasileiro. Eu tive
esses cuidados todos em favor dos índios, porque o propósito da
Constituição não foi substituir a cultura do índio pela do branco, foi
somar uma à outra. Tudo para prestigiar as etnias indígenas. Tudo que
foi feito ali (Raposa Serra do Sol), tirando essa questão do marco
temporal, que causa dúvida, foi feito numa perspectiva de interpretar a
Constituição como efetivamente ela deve ser interpretada: em favor das
comunidades e populações indígenas.
O senhor avalia que houve alguma forma de imprecisão ao citar o marco temporal da ocupação?
Eu não diria má-fé, ou deturpação, eu diria que estão dando uma
interpretação equivocada, indevidamente reducionista das coisas. Os anos
passam e querem inverter as coisas, desfavorecer as comunidades
indígenas, isso é reducionismo tecnicamente equivocado. É uma postura
interpretativa na contramão da Constituição e fora do ambiente em que
nós decidimos. O Brasil pagou uma dívida histórica, por intermédio do
Supremo, e agora querem estornar a dívida para fazer o Brasil voltar a
ser devedor das comunidades indígenas.
Qual foi o entendimento concreto daquela decisão do caso Raposa?
Nós entendemos que ali havia um limite semântico que não podia ser
transposto: o tempo do verbo ocupar. Porém, eu tive o cuidado e fui
seguido pelos ministros, eles também foram muito cuidadosos, de dizer
que o marco temporal do dia 5 de outubro de 1988 não seria considerado –
seria afastado – naquelas situações em que os índios não se
encontrassem em uma determinada área geográfica por impossibilidade,
porque estavam escorraçados, coagidos, ameaçados, foram expulsos. Se
ficasse comprovado esse estado de coisas, o marco temporal não
prevaleceria. Nós dissemos isso no meu voto e no acordão também.
Qual a opinião do senhor sobre um eventual reconhecimento do marco temporal?
Quando o Supremo vai decidir uma questão, eu não falo sobre essa
questão, quanto mais naquelas questões nas quais eu fui relator e
participei delas. Não me sinto muito à vontade para falar sobre isso.
Na época, o senhor falou que estava se atendo a uma questão semântica do verbo ocupar…
Não foi apenas. A semântica nos ajudou a entender o significado do marco temporal.
No voto, o senhor fala em marco temporal da ocupação, trecho
que tem sido utilizado por agropecuaristas como argumento, mas, também,
em marco da tradicionalidade da ocupação. Qual das duas leituras deve
prevalecer?
Às vezes, pela questão da tradicionalidade, é possível interpretar a
extensão territorial da posse dos indígenas ampliativamente, e não de
modo reducionista, para homenagear a tradicionalidade como cultural.
Essa passagem do voto foi para conferir à dimensão geográfica da
ocupação um sentido extensivo, e não reducionista, foi para favorecer os
índios também. Nós dissemos isso.
Então, apesar de a semântica ser importante e ser o que
balizou o voto do senhor e de outros ministros, o verbo “ocupar”, no
tempo presente não é restritivo?
Não é restritivo. A interpretação que se faz quanto à delimitação da
extensão territorial fundiária é sempre em sentido ampliativo, e não
reducionista.
Weslley Galzo/Estadão Conteúdo
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