O antiamericanismo infantil anda rolando solto com a retirada do Afeganistão e o papa faz sua própria - e equivocada - contribuição. Vilma Gryzinski:
Quem
confundiria Angela Merkel com Vladimir Putin? Não Jorge Bergoglio, o
papa que, como todos os jesuítas, sabe muito bem fazer a lição de casa.
Exceto
quando as paixões políticas interferem no bom julgamento – e o papa
argentino não tem como negar suas origens no populismo peronista,
inerentemente contrário aos princípios das democracias liberais.
Só
pode ter sido este o motivo pelo qual o papa Francisco atribuiu à
primeira-ministra uma declaração feita por Putin por ocasião de uma
visita recente dela a Moscou – a sua última como chefe do governo
alemão.
A
confusão aconteceu durante uma entrevista a uma rádio católica
espanhola. O comentário de Putin foi uma crítica nada sutil ao
envolvimento dos Estados Unidos no Afeganistão, encerrado com a
vexaminosa retirada às pressas.
“É
necessário por fim à política irresponsável de intervenções externas e
de construção de democracias em outros países, ignorando as tradições
dos povos”, diz a citação reproduzida por Francisco como se fosse de
Merkel e elogiada por ele como “lapidar”.
Se
não fosse o viés ideológico, Francisco veria perfeitamente que Angela
Merkel jamais faria insinuações contra os Estados Unidos – pelo menos
sob a administração de Joe Biden – e nunca criticaria a democracia que,
como alemã oriental, só foi conhecer depois da queda do Muro de Berlim.
Sem
contar que foi a democracia imposta pelos americanos aos inimigos
derrotados que permitiu a reconstrução da Alemanha no pós-guerra e, na
culminação de um arco histórico, acabou levando à reunificação do país.
Já
Putin, intrinsecamente avesso aos princípios democráticos, aproveita
qualquer oportunidade para espetar os Estados Unidos. Ontem, ele repetiu
as críticas ao capítulo americano no Afeganistão, com mais detalhes (um
deles, politicamente incorretíssimo):
“Tropas
americanas passaram vinte anos nesse país e, ao longo de vinte anos,
tentaram – e isso pode ser dito sem ofender ninguém – civilizar a
população local, mas na verdade queriam impor suas normas e seus modos
de vida, incluindo a organização política da sociedade”.
“Os
únicos resultados foram perdas e tragédias para os que estavam fazendo
isso – para os Estados Unidos – e principalmente para o povo que vive no
território do Afeganistão. Isso é um resultado de soma zero, se não
negativo”.
Como
Putin é esperto, já admitiu que a própria Rússia, quando ainda era o
coração da União Soviética, aprendeu duras lições no Afeganistão.
Durante
os dez anos de intervenção no Afeganistão, os russos tentaram fazer
tudo o que os americanos descobririam, também, ser impossível:
estabilizar um governo impopular, equipar seu exército com material
bélico de primeira, cooptar a população com ajuda econômica e, quando
nada disso deu certo, abrir caminho a uma composição entre forças
adversárias.
Na
época, o governo era comunista e o Kremlin apostou numa intervenção
direta para mantê-lo no poder, ampliando assim sua influência na Ásia
Central. Dez anos depois, os últimos soldados soviéticos cruzaram a
Ponte da Amizade, a formidavelmente irônica construção entre montanhas
do Afeganistão e do Uzbequistão, então uma república soviética.
A
guerra do Afeganistão custou mais caro aos russos – quinze mil mortos
em dez anos, contra quase seis mil baixas americanas, entre militares e
terceirizados, no dobro do tempo. A retirada, ordeira, apesar de ataques
de mujahidins armados pelos americanos, foi determinada por Mikhail
Gorbachev, o reformista que começou tentando melhorar o sistema
comunista e acabou vendo seu desmonte. A União Soviética acabou apenas
dois anos depois do fim da experiência fracassada no Afeganistão.
Entre
os guerrilheiros inspirados pelo fervor religioso que podiam se
orgulhar de ter feito o glorioso Exército Vermelho bater em retirada –
da mesma forma que os talibãs hoje sapateiam sobre os símbolos do poder
americano -, estavam voluntários de vários países árabes que iriam se
reorganizar em torno de um líder carismático chamado Osama Bin Laden.
O
insignificante, atrasado e perdido Afeganistão está assim
indelevelmente ligado a acontecimentos históricos monumentais, como o
fim do comunismo soviético e os atentados do Onze de Setembro, com seus
desdobramentos político-militares.
Mesmo
conhecendo todas estas complexidades, o papa argentino quis tirar uma
casquinha dos americanos, como outros atores menos cotados estão
tentando fazer. Acabou dando uma mancada.
Foi
mais feliz ao falar com sinceridade sobre a parte mais difícil do
confinamento – “Aguentar a mim mesmo. É uma ciência que ainda tenho que
terminar de aprender” – e seus recentes problemas de saúde.
“Nem
me passou pela cabeça”, disse sobre a boataria de abdicação, depois da
cirurgia em que removeu 33 centímetros do intestino grosso por causa de
uma diverticulite séria.
Mas
admitiu, de bom humor, que os boatos são naturais. Sempre que um papa
fica doente, sopra “uma brisa ou um furacão”, falando sobre sucessão.
Ele
também contou como conheceu Jorge Luis Borges porque era amigo de sua
secretária e o escritor, a seu convite, deu uma palestra sobre
literatura no colégio jesuíta onde era professor.
“Um homem muito bom, muito bom”.
Dá
até para imaginar como seria um roteiro sobre os encontros entre o
maior de todos os argentinos e o que viria a se tornar o mais conhecido
deles. Excluindo-se, claro, Maradona.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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