Arqueóloga Rebecca Wragg Sykes repassa as últimas grandes descobertas sobre essa espécie e tenta derrubar alguns dos preconceitos que a cercam. Entrevista a Alberto Quero, do El País:
A relação dos neandertais
com este mundo surgiu há 350.000 anos. A de Rebecca Wragg Sykes
(Londres, 40 anos) com eles começou logo depois de ela completar 14
anos. Em uma visita organizada por seu colégio, Wragg Sykes viu de perto
como se trabalhava em um sítio arqueológico da era romana. “Então percebi que queria estudar arqueologia”, diz.
Anos
mais tarde, um vídeo projetado no Museu das Cavernas de Altamira
(Espanha) a fez fechar o foco sobre o que realmente lhe interessava. Os
restos romanos eram legais, mas o período do Pleistoceno
era um campo muito mais “apaixonante”. “Não temos textos, não temos
registros escritos, mesmo comparando com a pré-história mais recente não
temos tanto material, por isso temos que usar ainda mais a criatividade
para obter o máximo de informação possível”, diz Wragg Sykes numa
entrevista por videoconferência.
Quinze
anos de estudo são concentrados agora em seu livro Kindred: Neanderthal
life, love, death and art (“Parentes: vida, amor, morte e arte dos
neandertais”, inédito no Brasil), incluído pelo The New York Times entre
os 100 mais destacados de 2020. “Uma nova e completa história sobre os neandertais
que sintetiza milhares de estudos acadêmicos em um único relato
acessível”, disse o jornal em uma de suas resenhas. O objetivo é
aproximar todos os públicos das grandes descobertas recentes em torno
dos neandertais, mas também levar outros detalhes sobre sua vida e seu
cotidiano que não têm espaço em muitos meios convencionais.
Pergunta. Qual era seu objetivo ao escrever o livro?
Resposta.
Os neandertais são interessantes porque aparecem muito na mídia.
Costumo dizer que são como celebridades. Se há uma descoberta sobre os
neandertais, frequentemente é noticiada. Mas o que não é noticiado são
as outras informações que os arqueólogos conhecem, e que é complicado de
explicar em um só artigo. Então eu quis escrever um livro que reunisse
tudo o que a arqueologia moderna pode dizer sobre os neandertais,
incluindo os grandes descobrimentos, mas também como a arqueologia
trabalha atualmente. Queria apontar as diversas dificuldades que
encontramos no que fazemos, e como as resolvemos para criar este
conhecimento tão rico sobre a vida dos neandertais. Acho que às vezes
não nos comunicamos fora do nosso âmbito. Alguns dos principais assuntos
que aparecem na televisão ou nos grandes jornais são frequentemente relacionados à extinção deles,
e eu queria falar sobre o resto dos neandertais, dos 300.000 anos antes
que isso ocorresse, que também são muito interessantes. E queria pensar
neles em seus próprios termos, sem ter a nós mesmos como pano de fundo.
P. Como foi o processo de criação, com a pandemia no meio?
R.
Comecei a falar com meu editor sobre o assunto há uns oito anos, mas na
verdade demorei uns três anos e meio para escrevê-lo. Comecei no
princípio de 2017, enquanto estava na França, e depois voltei para o
Reino Unido. Embora tenha sido uma experiência maravilhosa, é difícil
passar de uma linguagem acadêmica, onde para cada exemplo você precisa
se basear em um exame de DNA ou demonstrar seu ponto de vista, para
escrever para todos os públicos. Tive que reestruturar o livro. Era o
dobro de longo do que é agora. Por tudo isso, o processo foi difícil,
embora eu tenha gostado de escrever a introdução dos capítulos, que são
muito mais narrativas. Nisso eu me diverti muito. Quanto à pandemia, não
foi difícil para mim em comparação com o que as outras pessoas tiveram
que enfrentar em nível profissional. Ao final do livro menciono a
covid-19 e a pandemia, porque o epílogo já se centrava em perguntas existenciais relacionadas à crise climática
e as preocupações das pessoas em torno deste tema. A pandemia foi outro
elemento. Para mim, mostrou como as oportunidades e a sorte desempenham
um papel fundamental no que ocorre conosco como espécie, e acredito que
isso seja muito importante.
P. Uma das histórias mais interessantes é a da origem do nome dos neandertais. De onde vem?
R. É uma dessas conexões históricas estranhas. Há muitas coisas antigas na história dos neandertais que nem sequer incluí, porque são extremamente esquisitas. Por exemplo, em um momento da II Guerra Mundial,
havia uma caveira de neandertal sob o altar de uma velha igreja
católica em Roma [risos]. Uma coisa muito estranha. O nome dos
neandertais como espécie originalmente vem da caverna de Feldhofer, na
Alemanha, que fica no vale de Neander [Neandertal, em alemão]. Esse vale
foi batizado dessa forma em alusão a um poeta e compositor [Joachim
Neander] dos anos 1600, uns 100 anos depois da sua morte. Mas antes
disso já era um vale muito bonito, era um lugar muito turístico, aonde
as pessoas iam se inspirar. O curioso é que o sobrenome original desta
família era Neumann, mas por uma moda da época, seu avô modificou seu
sobrenome e adotou o de Neander. Neumann significa “homem novo”. Então o
vale de Neander foi batizado, sem que soubessem, como o “vale do homem
novo”, muitos anos antes de ali serem encontrados os primeiros restos de
neandertais. Não se pode imaginar um lugar mais adequado.
P. Lendo o livro dá a sensação de que sabemos tudo sobre os neandertais. É assim?
R. Há muitas coisas que desconhecemos. Não sabemos qual é o ponto mais oriental que habitaram. A caverna de Denisova, na Sibéria,
é o ponto mais oriental onde encontramos restos. Mas isso não significa
que seja o ponto mais oriental aonde chegaram. Entre Denisova e o
Pacífico há só estepes e algumas montanhas, mas não há razão para que não pudessem chegar significativamente mais longe.
Tampouco sabemos quão longe eram capazes de se deslocar como
indivíduos. Temos duas formas de medir isso. Podemos olhar os isótopos
de seus ossos, que nos dizem que podiam andar 50 quilômetros. Mas
poderia não ser uma medida real. A única outra forma pela qual podemos
fazer isso é rastreando a pedra das ferramentas que criavam, e dizer que
uma ferramenta veio de uma montanha que fica 100 ou 300 quilômetros
adiante. Quando você tem essas distâncias tão grandes, significa que os
neandertais se moviam individualmente nessas escalas? Ou entregavam esse
tipo de objetos em alguma espécie de intercâmbio? Não sabemos ainda.
Inclusive
não compreendemos completamente por que há tantas formas de fazer
ferramentas de pedra, porque havia. Não eram feitas de uma única forma, e
não sabemos por que todos os grupos de neandertais conheciam todos os
tipos de tecnologia. Isso é muito difícil de explicar. Se houver um
sítio arqueológico muito bem conservado, ele pode dizer coisas incríveis
sobre o que estava acontecendo ali, como esse lugar está conectado com
outros sítios, com a paisagem. Mas há aspectos fundamentais que não
sabemos. Deslocavam-se em grupos? Com que frequência? É difícil de
dizer. Podemos olhar para isso de uma perspectiva individual e pensar
“talvez se deslocassem muito entre grupos”, mas provar que todos faziam
isso é complicado, porque viveram durante um intervalo de tempo enorme e
em uma área muito ampla. Mas acho que estamos melhorando em entender
que precisamos esperar muita diversidade nas coisas que eles faziam.
P.
O livro também pretende derrubar os clichês que há em torno da figura
dos neandertais. Por que esses clichês estão tão arraigados?
R.
Acho que é algo estranho, porque os neandertais foram os primeiros
hominídeos que encontramos. Foi a primeira vez que soubemos que havia
outro tipo de humano no planeta. Foram mostrados como algo com que nos
comparar desde o princípio das origens humanas. Acho que nesse sentido
sempre olhamos de uma forma muito entusiasmada para as diferenças e
salientamos que eles são como um lixo. Temos uma visão negativa porque
queremos explicar por que eles não estão mais aqui. Não há neandertais
ao nosso redor, e queremos explicar isso de uma forma que nos ponha em
bom lugar. E queremos fazer assim porque é como emolduramos nossa
explicação das coisas. Definitivamente, há uma visão negativa
persistente sobre os neandertais, tanto na ciência como na cultura. Mas,
por outro lado, se eu conheço alguém, em um trem ou uma situação
similar, e digo que trabalho com neandertais, muito frequentemente me
dizem “Ah, não são tão estúpidos como se achava”. Mas as pessoas ainda gostam de usar a palavra neandertal como insulto. Isso se separou da arqueologia, o insulto continua aí.
P.
Mas os neandertais viviam em grupos, preocupavam-se com os outros,
dormiam em camas, se interessavam pela arte, tinham uma cultura e um
algo parecido com uma linguagem. Poderíamos pensar que no fundo não somos tão diferentes.
R.
Se você observar o que os Homo sapiens faziam na época em que os
neandertais estavam vivos, a maior parte daquele tempo, faz entre
350.000 e 40.000 anos, os restos arqueológicos são muito semelhantes. Há
muito pouca diferença. É só um pouco depois de 100.000 ou 60.000 quando
começam a ser vistas algumas diferenças em nível estético e
possivelmente também em algumas tecnologias de caça [...]. Acho que um
dos grandes elementos que podem representar uma diferença, em termos da extinção,
é que neste ponto os grupos do Homo sapiens tinham uma organização
social diferente. Temos evidências arqueológicas de objetos simbólicos,
como pingentes de pedra. Inclusive a genética sugere que os primeiros
grupos de Homo sapiens não estavam isolados uns de outros. Viviam em
grupos pequenos, mas estavam bem conectados. E isso se parece muito com o
que vemos na população extrativista recente. As pessoas se moviam entre
grupos o tempo todo. Muitos deles não tinham um vínculo de sangue, mas
tinham redes de apoio amplas. E isso é o que talvez os neandertais não
tivessem, então acredito que o que talvez tenha realmente feito a
diferença está relacionado com as comunidades sociais dos primeiros Homo
sapiens.
P. Os neandertais eram quase tão inteligentes como nós, mas mesmo assim desapareceram. Podemos aprender algo com isso?
R.
Acho que tinham uma inteligência impressionante, e de alguma forma
podemos dizer que era a mesma. Mas talvez eles não pensassem no mundo
exatamente como nós pensamos, como essa ideia de uniões entre pessoas.
Talvez não fizessem tantas conexões entre ideias. Acho que temos que
pensar que os neandertais tiveram muito sucesso no que fizeram, não
foram uns fracassados. Uma boa comparação é observar a história profunda
da Terra e as grandes extinções maciças anteriores. Frequentemente há
animais que estavam muito bem adaptados ao meio ambiente, e mesmo assim foram extintos.
Houve um elemento de sorte. E temos que nos perguntar por que levou
tanto tempo? Sabemos que os Homo sapiens saíram da África entre 150.000 e
200.000 anos atrás. Se éramos tão superiores, por que demoramos tanto
tempo para substituí-los e chegar à Europa? Por que aconteceu tão tarde?
Mais ainda quando o que vemos desse período é que houve numerosos
encontros, por isso vemos através da genética, sabemos que houve mestiçagem.
Há algo que é diferente, e talvez a sorte seja o fator principal. Nosso
desejo de nos conectarmos com todos e socializarmos não nos torna mais
inteligentes, só nos torna diferentes. E isso poderia ajudar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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