Sofrimento, superação e sectarismo: Crusoé acompanhou uma pregação de André Mendonça, o "terrivelmente evangélico" indicado por Bolsonaro para o STF:
O
portão da igreja Comunidade das Nações, localizada a 10 quilômetros da
Praça dos Três Poderes, estava abarrotado de fiéis na manhã de domingo,
19. Duas filas se formavam para aquele que seria o mais concorrido culto
do dia. Após se submeterem a um termômetro para medir temperatura, ao
entrar os fiéis se deparavam com um salão repleto de luzes coloridas e
três telões gigantes que exibiam a imagem de um portentoso edifício. A
foto era uma referência ao tema da principal pregação do dia, que viria a
seguir, feita por um pastor ilustre. Passava pouco das 11 horas quando o
bispo João Batista Carvalho, presidente da congregação, anunciou o
convidado. Foi então que, carregando uma bíblia debaixo do braço
esquerdo, subiu ao palco-altar André Mendonça, o ex-advogado-geral da
União e ex-ministro da Justiça “terrivelmente evangélico” escolhido pelo
presidente Jair Bolsonaro para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal
Federal.
Pastor
presbiteriano, Mendonça vive uma situação insólita. Nesta sexta-feira,
24, completam-se 71 dias desde que Bolsonaro enviou o nome dele ao
Senado para ser sabatinado. Davi Alcolumbre, presidente da Comissão de
Constituição e Justiça, reluta em marcar a audiência, porém – ele
defende publicamente o nome do procurador-geral da República, Augusto
Aras, para a vaga aberta no Supremo com a aposentadoria de Marco Aurélio
Mello. Além de agir por interesse próprio, Alcolumbre vocaliza a
insatisfação de outros senadores que também torcem o nariz para o
escolhido de Bolsonaro. Hoje, diz o presidente da CCJ, Mendonça não
teria votos suficientes para ser aprovado pelo plenário, o ato seguinte à
sabatina na comissão. Seria algo sui generis. Desde que o STF foi
criado, há 131 anos, apenas cinco indicados ao tribunal foram rejeitados
pelo Senado, todos eles em 1894, no governo do marechal Floriano
Peixoto, quando o Brasil vivia a transição da monarquia para o sistema
republicano e o então presidente enfrentava uma oposição cruenta.
Premido
pela ala evangélica, uma de suas principais bases de sustentação,
Bolsonaro mantém a indicação mesmo diante dos sinais de resistência.
Para não ficar mal com seus apoiadores, o presidente apelou pessoalmente
a Alcolumbre para tentar tirar os obstáculos da frente, mas não teve
sucesso. Nos bastidores, ele já admite um possível infortúnio. Por tudo
isso, a pregação de André Mendonça na manhã de domingo foi, também, uma
metáfora do momento que ele atravessa. Aos fiéis da Comunidade das
Nações, ele discorreu sobre sofrimento, superação e dificuldades no
trabalho. Também falou da “saga” que é progredir na vida e na carreira
em um mundo repleto de “inimigos e tentações do diabo”. Os temas compõem
a essência do Sermão da Montanha, uma conhecida pregação de Jesus
Cristo com ensinamentos morais que orientam a vida em sociedade e cuja
mensagem essencial – “Não sejam iguais a eles” – passa longe do
establishment reinante em Brasília.
Depois
de pedir que os presentes o acompanhassem, em suas próprias bíblias ou
nas versões digitais do livro sagrado baixadas em seus smartphones,
Mendonça partiu para um sermão sentimental, ilustrado por suas
experiências pessoais. Explicou que a vida é feita de momentos difíceis,
cheios de tentações extramundanas “que estão aí para serem superadas
com fé em Deus”. “Cairá chuva, transbordarão rios, o vento dará com
ímpeto contra sua vida. Talvez esse seja o momento que você esteja
vivendo. Talvez essa palavra lhe prepare para momentos como esse”,
disse. Apontando o dedo indicador para o alto, ele emendou:
“Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça. Se você está sendo
perseguido porque você é justo, dê um glória a Deus. É sinal que,
dentro da perspectiva do reino de Deus, do mundo espiritual, você está
chegando para ser diferente. Fazer diferença incomoda. Isso incomoda
aquilo que não pertence ao grande Deus”.
No
centro das atenções, o indicado de Bolsonaro para o Supremo desfilava
familiaridade com a oratória e o physique du rôle de pastor.
Gesticulava, fazia pausas longas entre uma fala e outra, circulava por
todo o palco, de 30 metros quadrados. Diminuía ou acelerava o discurso
ao sabor do entusiasmo dos fiéis. O tom de voz ia de um sussurro, quando
queria imprimir ênfase a um trecho bíblico, a frases mais vibrantes e
graves na hora de concluir um argumento. Era a senha para os aplausos,
seguidos, em geral, de um coral eloquente de “amém”. Cada trecho da
pregação obedecia a uma ordem bem definida de temas. Quando mudava de
assunto, fazia sempre uma pergunta, que era imediatamente respondida por
ele mesmo. “Quer uma vida plena? Se prepare, você vai disputar uma
Olimpíada. Você não vai ficar no joguinho do bairro. Você não vai ficar
disputando palavra cruzada, você vai estar disputando a Copa do Mundo”,
bradou, exortando os fiéis a não se contentarem com a mediocridade e a
se prepararem para desafios grandiosos. Era como se estivesse falando
para si mesmo: “Vocês estão vendo que os obstáculos, os desafios, são
grandes? Meus irmãos, os obstáculos e desafios na vida do crente foram
feitos para serem superados. Não queira uma vida medíocre”.
Foi
nesse momento que Mendonça apontou para a imagem reproduzida nos telões
e aconselhou os “irmãos” a edificarem suas vidas como engenheiros
edificam prédios seguros, sobre bases sólidas. A certa altura da
pregação, de 43 minutos, ele passou a se referir a si mesmo em primeira
pessoa. E se disse confiante, apesar das pedras no caminho. “As pessoas
me perguntam, por exemplo: ‘Nos momentos difíceis, como é que você
está?’. Estou em paz, continuo em paz. Porque Deus é poderoso.”
Ovacionado, Mendonça explicou que não costuma fazer pedidos específicos a
Deus e que deixa as bênçãos “a cargo do Todo-Poderoso”. “Eu me fio
muito em Isaías, 55 (refere-se ao livro da Bíblia). Como eu sei que os
pensamentos d’Ele são maiores que os meus, e os caminhos d’Ele são
maiores do que os meus, se eu estivesse pedindo a Deus só o que eu
queria, eu teria parado na minha aprovação lá na AGU em 98 e 99 (quando
ingressou no órgão por concurso público). Mas falei: ‘Não, eu quero que o
senhor me diga o que eu quero”. A pregação, enfim, era também sobre
ambições.
Mendonça
disse que o Sermão da Montanha foi decisivo em alguns momentos de sua
vida. E exemplificou: “Esse texto me falou muito ao coração na véspera
da minha ida para a Espanha em 2012 (para fazer o doutorado em
Salamanca). Eu era diretor de um departamento na AGU, tinha acabado de
receber vários prêmios. E a decisão que eu tomei era ter um período de
estudo, dar alguns passos atrás, e muita gente da minha família disse:
‘André não faça isso, você vai deixar seu cargo, vai deixar benefícios
financeiros, materiais’. Era um passo que eu tive que dar pela fé”.
A
maior parte dos fiéis era formada por jovens entre 20 e 30 anos. Para
atrair esse público, a igreja se adaptou aos novos tempos. Para
participar do culto, era preciso fazer uma inscrição por meio de um
aplicativo. Após deixar alguns dados, cada fiel recebe um QR Code que
precisa ser apresentado na entrada. Pouco antes de Mendonça começar a
falar, um pastor lembrou os fiéis da necessidade de pagamento do dízimo,
explicando que a contribuição seria “retribuída por Deus por meio de
bênçãos e vitórias financeiras na vida de cada um”. Maquininhas de
cartão de crédito circulavam entre os fiéis para coletar as doações.
Fundada
em Brasília, há 17 anos, a Comunidade das Nações é uma igreja
evangélica com cerca de 25 templos espalhados em nove estados. A
congregação, que há tempos atrai políticos, ganhou mais projeção no
atual governo pelo alinhamento com Jair Bolsonaro. Seu fundador, o bispo
João Batista Carvalho, conhecido como JB Carvalho, costuma aparecer em
eventos públicos ao lado do presidente. Em julho deste ano, ele esteve
com Bolsonaro em Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, para a
inauguração de uma obra. Natural de Teresina, o bispo se apresenta como
teólogo, conferencista, professor universitário, compositor, jornalista e
escritor. Ele também é amigo do pastor e deputado Marco Feliciano e de
vários outros parlamentares. Entre os políticos que frequentam a igreja,
estão a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares
Alves, e a deputada federal Celina Leão, que emprega Ana Cristina Valle,
ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe do filho 04 do presidente.
Assim
que concluiu sua pregação, André Mendonça acomodou-se na primeira
fileira de assentos. Ele ainda permaneceria no local por mais 30
minutos. Na ida à igreja, ele foi escoltado pelo ministro da Educação,
Milton Ribeiro, que também é pastor evangélico e chegou a usar o
microfone para desejar “sorte” ao amigo “em sua jornada”. Se o ministro
estava se referindo à aprovação de Mendonça para o STF, o desejo não
basta. O amigo vai precisar bem mais do que sorte. Como no Sermão da
Montanha, o caminho para Mendonça está cada vez mais estreito e
apertado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário