O
ensaio a seguir, do filósofo Ernest Nagel, foi publicado originalmente
como um trecho de The Structure of Science (Nova York, Harcourt, Brace
& World, 1961). editada por Edward Craig (Londres: Routledge, 1998)
Traduzido por Pedro Galvão, foi publicado em português no site Crítica na Rede e agora pelo Estado da Arte:
Ninguém
duvida seriamente de que muitas das ciências particulares existentes se
desenvolveram a partir das necessidades práticas da vida quotidiana: a
geometria a partir de problemas de medição dos campos, a mecânica a
partir de problemas suscitados pelas artes arquitectónicas e militares, a
biologia a partir de problemas da saúde humana e da criação de animais,
a química a partir de problemas suscitados pelas indústrias de tintas e
de metais, a economia a partir de problemas de gestão doméstica e de
organização política, e assim por diante. É certo que existiram outros
estímulos para o desenvolvimento das ciências para além daqueles que
surgiram dos problemas das artes práticas. No entanto, estes últimos
tiveram, e ainda continuam a ter, um papel importante na história da
investigação científica. Nestas circunstâncias, os comentadores da
natureza da ciência que ficaram impressionados pela continuidade
histórica entre as convicções do senso comum e as conclusões
científicas, têm proposto por vezes que se diferencie ambas através da
fórmula que nos diz que as ciências são simplesmente senso comum
“organizado” ou “classificado”.
Não
há dúvida de que as ciências são corpos organizados de conhecimento, e
de que em todas elas uma classificação dos seus materiais em tipos ou
géneros importantes (como a classificação dos seres vivos em espécies na
biologia) é uma tarefa indispensável. Mesmo assim é claro que a fórmula
proposta não exprime adequadamente as diferenças características entre a
ciência e o senso comum. Os apontamentos de um conferencista sobre as
suas viagens em África podem estar muito bem organizados para o
objectivo de comunicar informação de uma maneira interessante e
eficiente, sem que isso converta essa informação naquilo a que
historicamente se tem chamado ciência. Um catálogo de um bibliotecário
apresenta uma boa classificação de livros, mas ninguém que respeite um
pouco o sentido histórico da palavra dirá que o catálogo é uma ciência. A
dificuldade óbvia é a de que a fórmula proposta não especifica que tipo
de classificação é característica das ciências.
2. Explicações científicas
Vamos
então virar-nos para esta questão. Uma característica notável de muita
da informação que adquirimos ao longo da experiência comum é a de que,
embora essa informação possa ser suficientemente precisa dentro de
certos limites, ela raramente é acompanhada por qualquer explicação que
nos diga por que se deram os factos alegados. Deste modo, as sociedades
que descobriram os usos da roda habitualmente não sabiam nada sobre
forças de fricção, nem sobre as razões que fazem com que os bens
colocados em veículos com rodas sejam transportados com mais facilidade
do que os bens arrastados pelo chão. Muitas pessoas aprenderam que era
aconselhável adubar os seus campos agrícolas, mas poucas se preocuparam
com as razões para agir assim. As propriedades medicinais de plantas
como a dedaleira foram reconhecidas há séculos, embora habitualmente não
se tenha oferecido qualquer explicação das suas virtudes benéficas.
Para além disso, quando o “senso comum” tenta dar explicações para os
seus factos — como quando se explica o valor da dedaleira como
estimulante cardíaco através da semelhança entre a forma da flor e a do
coração humano — as explicações carecem frequentemente de testes sobre a
sua relevância para os factos.
É
o desejo de explicações que sejam ao mesmo tempo sistemáticas e
controláveis através de dados factuais que gera a ciência, e é a
organização e classificação do conhecimento segundo princípios
explicativos que é o objectivo próprio das ciências. Mais
especificamente, as ciências procuram descobrir e formular em termos
gerais as condições sob as quais ocorrem acontecimentos de vários
géneros, sendo as proposições sobre essas condições determinantes as
explicações desses acontecimentos. Podem descobrir-se relações regulares
que abrangem vastos domínios de factos, de tal forma que com a ajuda de
um pequeno número de princípios explicativos pode mostrar-se que um
número indefinidamente grande de proposições sobre esses factos
constituem um corpo de conhecimento logicamente unificado. Esta
unificação assume por vezes a forma de um sistema dedutivo, como
acontece na geometria demonstrativa e na ciência da mecânica. Deste
modo, através de poucos princípios, como os que foram formulados por
Newton, consegue-se mostrar que proposições sobre o movimento da Lua, o
comportamento das marés, os percursos de projécteis e a subida de
líquidos em tubos estreitos estão intimamente relacionadas, e que todas
essas proposições podem ser rigorosamente deduzidas a partir desses
princípios em conjunção com várias informações sobre factos.
Explicar,
estabelecer alguma relação de dependência entre proposições que
superficialmente não estão relacionadas, apresentar sistematicamente
conexões entre fragmentos de informação aparentemente heterogéneos, são
características próprias da investigação científica.
3. A indeterminação do senso comum
Muitas
crenças quotidianas sobreviveram a séculos de experiência, o que
contrasta com o período de vida relativamente curto a que estão
frequentemente destinadas as conclusões avançadas em vários ramos da
ciência moderna. Uma das razões deste facto merece atenção. Consideremos
um exemplo de uma crença do senso comum, como a de que a água
solidifica quando é suficientemente arrefecida.
Se
pudermos considerar este exemplo como típico, podemos dizer que a
linguagem em que o senso comum está formulado e é transmitido pode
exibir dois tipos importantes de indeterminação. Em primeiro lugar, os
termos da linguagem comum podem ser bastante vagos, no sentido em que a
classe das coisas designadas por um termo não está clara e rigorosamente
demarcada da classe das coisas que ele não designa. Em segundo lugar,
os termos da linguagem comum podem carecer de um grau de especificidade
relevante. Por esse motivo, as relações de dependência entre
acontecimentos não estão formuladas de uma maneira determinada com
precisão nas proposições que contêm esses termos.
Devido
a estas características da linguagem comum, o controlo experimental das
crenças do senso comum é frequentemente difícil, já que não pode
traçar-se facilmente a distinção entre os dados da observação que as
confirmam e os que as refutam. Deste modo, a crença de que “em geral” a
água solidifica quando é suficientemente arrefecida pode corresponder às
necessidades das pessoas cujo interesse pelo fenómeno do arrefecimento
está circunscrito ao seu interesse em atingir os objectivos habituais da
sua vida quotidiana, apesar de a linguagem utilizada na codificação
desta crença ser vaga e carecer de especificidade. Essas pessoas podem
por isso não ver qualquer razão para modificar a sua crença, mesmo que
reconheçam que a água do oceano não congela, embora a sua temperatura
seja sensivelmente a mesma do que a água de um poço quando começa a
solidificar, ou que alguns líquidos têm de ser arrefecidos a um grau
maior do que outros para mudarem para o estado sólido. Se forem
pressionadas para justificar a sua crença perante estes factos, essas
pessoas podem talvez excluir arbitrariamente os oceanos da classe de
coisas a que dão o nome de água, ou, como alternativa, podem exprimir
uma confiança renovada na sua crença, defendendo que seja qual for o
grau de arrefecimento que possa ser necessário, os líquidos
classificados como água acabam por solidificar quando são arrefecidos.
4. A refutabilidade e instabilidade da ciência
Na
sua procura de explicações sistemáticas, as ciências devem reduzir a
indeterminação indicada da linguagem comum ao remodelá-la. A química
física, por exemplo, não se satisfaz com a generalização, formulada de
uma maneira vaga, segundo a qual a água solidifica quando é
suficientemente arrefecida, já que o objectivo desta disciplina é o de
explicar, entre outras coisas, por que a água e o leite que bebemos
congelam a certas temperaturas, embora a essas temperaturas não aconteça
o mesmo com a água do oceano. Para atingir este objectivo, a química
física deve então introduzir distinções claras entre vários tipos de
água e entre várias quantidades de arrefecimento. Várias técnicas
reduzem a vagueza e aumentam a especificidade das expressões
linguísticas. Para muitos propósitos, contar e medir são as técnicas
mais eficientes, e talvez sejam também as mais conhecidas. Os poetas
podem cantar a infinidade de estrelas que permanecem no céu visível, mas
o astrónomo quer especificar o seu número exacto. O artesão que
trabalha com metais pode ficar satisfeito por saber que o ferro é mais
duro do que o chumbo, mas o físico que quer explicar este facto tem de
ter uma medida precisa da diferença em dureza. Uma consequência óbvia,
mas importante, da precisão assim introduzida é a de que as proposições
se tornam susceptíveis de ser testadas pela experiência de uma maneira
mais crítica e cuidada. As crenças pré-científicas são frequentemente
insusceptíveis de ser sujeitas a testes experimentais definidos,
simplesmente porque essas crenças são compatíveis de uma maneira vaga
com uma classe indeterminada de factos que não são analisados. As
proposições científicas, como têm de estar de acordo com dados da
observação bem especificados, enfrentam riscos maiores de ser refutadas
por esses dados.
A
maior determinação da linguagem científica ajuda a esclarecer o facto
de muitas crenças do senso comum terem uma estabilidade, que se prolonga
frequentemente por muitos séculos, que poucas teorias científicas
possuem. É mais difícil construir uma teoria que, depois de confrontos
repetidos com os resultados de observações experimentais rigorosas,
permanece inabalada, quando os critérios para o acordo que se deve obter
entre esses dados experimentais e as previsões derivadas da teoria são
exigentes do que quando esses critérios são vagos e não se exige que os
dados experimentais admissíveis sejam estabelecidos por procedimentos
cuidadosamente controlados. Na verdade, as ciências mais avançadas
especificam quase sempre o grau com que as previsões derivadas de uma
teoria se podem desviar dos resultados das experiências sem invalidar a
teoria. Os limites desses desvios permissíveis geralmente são bastante
reduzidos, de tal modo que certas discrepâncias entre a teoria e a
experiência que seriam vistas pelo senso comum como insignificantes são
frequentemente consideradas fatais para a adequação da teoria.
Por
outro lado, embora a maior determinação das proposições científicas as
exponha a riscos de se descobrir que estão erradas maiores do que
aqueles que enfrentam as crenças do senso comum (enunciadas com menos
precisão), as primeiras têm uma vantagem importante sobre as segundas.
Elas têm uma capacidade maior para ser incorporadas em sistemas de
explicação amplos e claramente articulados. Quando esses sistemas são
adequadamente confirmados por dados experimentais, revelam muitas vezes
relações de dependência surpreendentes entre muitos tipos de factos
experimentalmente identificáveis, mas diferentes.
5. Conclusões
Nas
diferenças entre a ciência moderna e o senso comum já mencionadas, está
implícita a diferença importante que deriva de uma estratégia
deliberada da ciência que a leva a expor as suas propostas cognitivas ao
confronto repetido com dados observacionais criticamente comprovativos,
procurados sob condições cuidadosamente controladas. Isto não
significa, no entanto, que as crenças do senso comum sejam
invariavelmente erradas, ou que não tenham quaisquer fundamentos em
factos empiricamente verificáveis. Significa que, por uma questão de
princípio estabelecido, as crenças do senso comum não são sujeitas a
testes sistemáticos realizados à luz de dados obtidos para determinar se
essas crenças são fidedignas e qual é o alcance da sua validade.
Significa também que os dados admitidos como relevantes na ciência devem
ser obtidos através de procedimentos instituídos com o objectivo de
eliminar fontes de erro conhecidas. Deste modo, a procura de explicações
na ciência não conseguiste simplesmente em tentar obter “primeiros
princípios” que sejam plausíveis à primeira vista e que possam vagamente
dar conta dos “factos” da experiência habitual. Pelo contrário, essa
procura consiste em tentar obter hipóteses explicativas que sejam
genuinamente testáveis, porque se exige que elas tenham consequências
lógicas suficientemente precisas para não serem compatíveis com quase
todos os estados de coisas concebíveis. As hipóteses procuradas devem
assim estar sujeitas à possibilidade de rejeição, que dependerá dos
resultados dos procedimentos críticos, inerentes à pesquisa científica,
destinados a determinar quais são os verdadeiros factos do mundo.
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