A boçalidade registrada em Nova York é constrangedora para nossas elites. William Waack para o Estadão:
As peripécias envolvendo a comitiva presidencial para participar da Assembleia-Geral da ONU
em Nova York demonstram que boçalidade é contagiante. É até possível
por hipótese admitir que um político disputando votos, como é o caso de Jair Bolsonaro,
calcule ganhar vantagem eleitoral com comportamentos boçais em público.
Faz tempo que “tosco” virou “autêntico” (Collor dizia ter aquilo roxo).
Também
por hipótese pode-se admitir que ministros de Estado que fazem gestos
obscenos para manifestantes (o da Saúde) ou macaqueiam símbolos usados
em campanha política pelo presidente (o das Relações Exteriores) – como
aconteceu em Nova York – jogaram fora compostura e decoro para agradar
ao chefe. Puxa-saquismo e apego ao cargo são reconhecidamente parte da
condição humana. Talvez imperdoável, mas compreensível.
Não
é por acaso que o mundo empresarial adaptou da política a expressão
“cultura corporativa” para descrever como uma figura de comando (um CEO,
por exemplo) é capaz de moldar estruturas hierárquicas ao seu estilo e,
o que é mais importante, seu modo de pensar. Basta constatar que não só
ministros forçosamente metidos na política, como Paulo Guedes,
mas também alguns considerados “técnicos”, abraçaram teorias boçais de
conspiração que sustentam o universo paralelo de Bolsonaro.
Na
verdade, o fenômeno da boçalidade contagiante é muito mais amplo e
profundo. Já foi tratado na ciência política como “princípio da
comunicabilidade”, e o que aconteceu em Nova York é parte dele: são
processos pelos quais elites sociais deixam corroer seus valores e
acabam vencidas pelo “simples” (no caso, boçal) na conformação do seu
universo de pensamentos. Numa imortal passagem literária, é a exclamação
de Euclides da Cunha de que “Canudos não se rendeu!”
Em
outras palavras, é a admissão quase impossível de ser feita em público
por elites (na época de Euclides, as tais “classes letradas”) da
falência de suas maçarocas ideológicas e a vigência das crenças (teorias
conspiratórias) e o modo bronco e rude de dizer “as verdades”. Não, não
se trata de forma alguma de comparar Bolsonaro a Antonio Conselheiro, e
muito menos o arraial de Canudos às redes sociais bolsonaristas. Seria
uma injustiça com Conselheiro e Canudos.
Mas,
sim, de registrar o fato de que o modo de pensar de elites foi vencido
pela boçalidade que elas julgaram poder comandar. Provocou em muita
gente um sentimento de “vergonha alheia” a boçalidade da comitiva
presidencial em Nova York – que abrange dos comportamentos descritos
acima à ideia profundamente boçal de que algo mudaria na péssima imagem
externa do Brasil a partir de um discurso na Assembleia-Geral da ONU
inconsequente, dirigido em primeira linha aos convertidos do
bolsonarismo.
Boa
parte das elites sociais brasileiras repudia o que viu e ouviu em Nova
York e se sente ofendida diante da, no mínimo, reiterada desonestidade
intelectual dos que falaram pelo Brasil. Esse sentimento de “aquilo não
somos nós” foi aprofundado pela noção do ridículo de ver o País virar
piada pronta – a de ter na comitiva presidencial um ministro da Saúde
transformado em potencial “super spreader” do vírus que o chefe
minimizou, e a delegação brasileira em risco para o resto do mundo na
sede da ONU.
A
vergonha é genuína. Em parte ela surge de uma constatação profundamente
desagradável: a de que nossa sociedade nem de longe venceu
desigualdade, miséria e injustiça social em todas as suas formas. Ao
contrário do que possa parecer, porém, a frase “Canudos não se rendeu”
não é a descrição do triunfo da ignorância, ou uma denúncia do atraso
social.
Era
um duríssimo recado de Euclides da Cunha (que alguns descreveram como
um “conservador lúcido”) às elites da sua época: vocês não conseguiram
derrotar um universo de pensamentos, vocês são parte dele, com suas
ideias pretensamente científicas e populares. Nesse sentido, Canudos
vive.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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