Uma foto tradicional dos anos 1980: criança sobre o capô do carro. Que, neste caso, acho que é um Corcel. Mas posso estar enganado. A crônica de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta:
Estou
viciado em “Grand Tour”, a versão da Amazon para o icônico “Top Gear”
britânico. Logo eu, que nunca gostei de carros, não gosto de carros e,
se um dia vier a ter um carro, será uma Kombi. De qualquer forma, “Top
Gear” não é uma série sobre carros. É uma série sobre a amizade, aquele
desejo de fazer traquinagem que insiste em resistir à experiência e, por
fim, sobre a relação afetiva das pessoas com essas máquinas.
Assistindo
a um episódio semimelancólico sobre a decadência da Ford no Reino
Unido, me lembrei de como tratamos a saída da montadora do Brasil. Houve
quem atribuísse a estratégia, parte de uma reestruturação mundial, a
ele, o culpado por tudo, Jair Bolsonaro. E falou-se no progressismo da
Fundação Ford, “incondizente” com a onda conservadora que teria tomado
conta do Brasil. Houve até um Zé Mané que escreveu sobre a tentativa do
velho Ford de criar uma cidade utópica no meio da Amazônia.
Mas
ninguém falou do aspecto humano e individual disso. De como o fim da
Ford mexeu e mexe com as memórias das pessoas. Em parte porque o carro
hoje em dia não tem mais o mesmo apelo das saudosas carroças pré-Collor.
Ao menos eu não conheço pessoas apaixonadas por HB20 ou que tiveram um
Ethios marcante em suas vidas. Em parte porque é mais difícil mergulhar
na alma alheia mesmo.
Eu
mesmo, que sempre nutri certa repulsa por carros e via com desconfiança
aqueles meninos do colégio que se reuniam no recreio para lerem junto a
revista Quatro Rodas, tenho cá minhas memórias, boas e más, associadas a
alguns carros da Ford.
Vida e morte
Foi
numa Belina caindo aos pedaços, por exemplo, que tentei dirigir pela
primeira vez. Todos os meus primos já dirigiam. Um deles, de apenas 13
anos na época, era mestre em dar cavalos de pau nas ruas de terra
vermelha de Umuarama, no interior do Paraná. O pobre-diabo aqui,
contudo, não conseguia entender para que servia aquele negócio de
marcha. Eu só viria a aprender a dirigir mesmo aos 21 anos.
Do
Corcel, fabricado por aqui de 1968 a 1986, eu me lembro pouco. Mas meus
pais sempre suspiram à menção do carro, porque ele representou um marco
na vida do casal recém-chegado a Curitiba. O Corcel está ligado ao bom
futuro que meus pais viam para si e para a família: a casinha na
periferia, os eletrodomésticos, a despensa cheia, mesmo em tempos de
hiperinflação, e até os filhos no colégio particular.
Tem
ainda o Escort XR3 – sonho de consumo de toda uma geração, mas que
acabou vitimando minha avó paterna ali na entrada de Joinville. E, por
fim, tem o Del Rey, último carro da Ford a ocupar as garagens da
família. Mesmo em sua versão mais luxuosa, o Del Rey era
insuportavelmente brega.
Sendo
o xodó do meu pai, o carro só saía da garagem em ocasiões especiais
(casamentos, batizados, Dia das Mães, Dia de Esfregar o Sucesso na Cara
do Cunhado Invejoso) e para viajar. Odeio o fato de ter passado mais
tempo do que gostaria lavando, encerando e deixando aqueles pneus
pretinhos. Mas adoro lembrar que, nas raras ocasiões em que meus pais
usavam o Del Rey para me levar ao colégio, ah, eu me sentia um boyzinho
de vila e quase entendia por que alguns amigos preferiam a Quatro Rodas à
Superinteressante.
Eletrodoméstico sobre rodas
Hoje
carro é só um eletrodoméstico sobre rodas. Nem mesmo os carros daquelas
marcas míticas significam alguma coisa para os jovens e adultos (a não
ser, talvez, a Tesla). Eles são um amontoado de aço e plástico que o
levam daqui para lá e de lá para cá. Para os mais wokes, então, pior
ainda. Para eles, carro é no máximo sinônimo de poluição, de
combustíveis fósseis, de capitalismo opressor, de estética massificada,
de ostentação vulgar.
A
decadência dos produtos da indústria automobilística no imaginário
popular e no inconsciente coletivo da espécie que sempre ambicionou
chegar mais rápido ao seu destino é evidente. E é consequência de um
movimento mais amplo, de desprezo pelas grandes conquistas humanas e por
tudo aquilo que nossos antepassados suaram para criar a fim de nos
legar um mundo de facilidades e confortos inimagináveis.
Não
queria concluir o texto neste tom de nostalgia fúnebre, mas não se pode
ter tudo na vida. Às vezes a única forma de recuperar alguma esperança
(e aqui estou falando da esperança de habitar um mundo mais grato) é
mesmo apelar para as memórias de todas as brincadeiras idiotas criadas
para passar o tempo, todas as broncas por derramar sorvete no estofado
novinho, todas as tardes de “banho no carro” ao som de Chitãozinho &
Xororó. E todas as brigas com a minha irmã no banco de trás dos
Voyages, Monzas, Chevettes, Fuscas e Fiats 147 da minha vida.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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