É em nome do Eu – Eu, Eu, Eu – que a liberdade do discurso (“expressão” é um conceito mais ambíguo) é limitada dia após dia, num enclausuramento progressivo. Já estivemos mais longe do 1984 de Orwell. Artigo do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Tudo,
a pouco e pouco, se vai tornando mais apertado, vigiado e
regulamentado: a liberdade, a linguagem, o pensamento. Cada semana nos
traz novos exemplos, cada um apimentado com uma certa cor local, mas
todos eles convergindo num ponto único: o de uma censura generalizada
que visa interditar a liberdade do discurso em nome da necessidade de
proteger a célebre “auto-estima” quer de certos grupos étnicos, quer da
subjectividade individual erigida em lugar de permanente queixa contra a
indiferença alheia e a incompreensão do mundo. Desenganem-se aqueles
que pensam que tudo isto não passa de uma conjuntural e provisória
loucura destinada a desvanecer-se sob o efeito de um sopro de bom-senso
vindo de um qualquer lugar, ou auto-destruindo-se como resultado dos
seus próprios exageros. Não. Foi algo que veio para ficar e que
apresenta todos os sinais de uma tendência poderosa e praticamente
incontrolável que varre tudo à sua frente. Não pretendo que seja
impossível encontrar pequenos lugares de resistência a essa tendência
generalizada, mas estou certo que eles se pagarão com um cada vez maior
isolamento e com uma indisfarçável solidão.
Os
Estados Unidos estão, como de costume, na vanguarda das ideias e é o
seu exemplo que inspira o que se passa hoje em dia em Inglaterra e por
essa Europa fora. A França, por exemplo, distingue-se do resto apenas
pela forma particularmente virulenta como o chamado “islamo-esquerdismo”
aí se manifesta. Mas, no essencial, é a mesma coisa. E quem fala da
Inglaterra e da França, fala da Europa democrática inteira, inclusive do
nosso pequeno Portugal, onde os elementos mais arcaicos do Bloco de
Esquerda – aqueles que vêm das várias formas da herança política do
marxismo – paradoxalmente funcionam ainda como obstáculo ao pleno
desenvolvimento da nova ideologia woke, apesar do Bloco a exprimir
abundantemente, ao ponto de isso se ter transformado na sua imagem de
marca.
Fiquemo-nos por alguns exemplos dos últimos dias, que são tudo menos exaustivos.
A
mayor de Chicago, Lori Lightfoot, do Partido Democrata, é negra. Apoia,
é claro, o Black Lives Matter. Mas não se fica por aí. Para combater o
“racismo estrutural” ou “sistémico”, tomou uma curiosa decisão: conceder
apenas entrevistas individuais a jornalistas negros ou, grande sinal de
tolerância, mestiços. Todas as críticas que lhe haviam sido feitas
enquanto mayor, declarou, provinham de um enviesamento racial. E ela já
perdeu a paciência para educar homens brancos. A extraordinária decisão
foi acatada sem grandes protestos na cidade. De resto, os programas que a
Câmara de Chicago tem lançado, reforçados agora pela insistência do
Presidente Biden em políticas centradas na “equidade”, já abundam em
critérios que determinam a exclusão racial daqueles que têm a pele
branca. Ficam surpreendidos com o gesto de Lori Lightfoot? Deviam ficar
ainda mais surpreendidos com a tranquila aceitação que a comunidade
testemunha a esse gesto. Ela não o teria tomado se não soubesse que, nos
Estados Unidos dos nossos dias, quase ninguém a censuraria por isso. A
restrição da liberdade do discurso, ainda por cima motivada por
preconceitos racistas, está ali bem instalada. Como notou a escritora
francesa (e negra) Rachel Khan, um novo segregacionismo, com as suas
particulares neuroses, tomou conta dos Estados Unidos, e com ele a
intolerância e o totalitarismo.
Tanto
a decisão de Lori Lightfoot quanto a naturalidade como foi acolhida só
se explicam pela difusão generalizada da tese do “racismo sistémico” ou
“estrutural” posta a circular pela socióloga Robin DiAngelo. De acordo
com a tese, tudo, sem excepção, na nossa sociedade testemunha da
pervasividade do racismo branco, tão presente nos comportamentos
claramente racistas quanto naqueles que aparentemente contra estes se
insurgem, desde que atribuídos a brancos. De facto, quando um branco se
afirma não-racista está, sem ter consciência disso, a exorbitar de
racismo (é a “fragilidade branca”), já que pretende ocultar o facto de
que a sociedade como um todo se encontra estruturada de forma racista,
ao ponto de a expressão “racismo branco” aparecer como naturalmente
pleonástica: todo o racismo é branco e todo o branco é racista.
Como
é bom de ver, não é só a ideia como um todo que é absurda. Os seus
efeitos práticos são fantasticamente perniciosos em todos os domínios.
Vejam o caso da polícia. Se um polícia branco prende um negro, por
muitas razões que tenha para o fazer, a acusação de racismo cairá logo
sobre ele, impiedosa. E, de acordo com a doutrina, ele está, de facto, a
ser racista, conscientemente ou não. Quando recentemente a activista
negra Sasha Johnson foi alvejada em Londres (encontra-se em estado
crítico no hospital), logo a dirigente trabalhista e deputada Diane
Abbott, muito próxima do antigo líder Jeremy Corbyn, denunciou um crime
de ódio racista. Acontece que a investigação policial parece concluir
que a bala que lhe acertou foi uma bala perdida numa rixa entre dois
gangs constituídos por negros. O que poderia ser visto como um
desmentido da acusação de Abbott, se deixado nas mãos de um discípulo ou
discípula de Robin DiAngelo imediatamente será visto, por artes mágicas
da dialéctica do “racismo sistémico”, como uma sua indirecta
confirmação, já que tudo está decidido à partida. Deixo a quem me lê a
tarefa de imaginar o curso dos argumentos. A fortuna extraordinária dos
termos “sistémico” ou “estrutural” é, de resto, prodigiosa. Um documento
recente da Igreja de Inglaterra apela a que a Igreja assuma o seu
“pecado estrutural (structural sin)”. E certamente que não faltarão por
aí teses dedicadas ao “pecado sistémico” em Santo Agostinho. Assim vão
os tempos. Assim os tempos cada vez mais serão, não tenham dúvidas.
Até
aos mais ínfimos detalhes. Como, por exemplo, no caso das chamadas
“micro-agressões”. Seguindo o exemplo de várias outras universidades do
Reino Unido, a Universidade de Cambridge elaborou uma lista muito
extensa de potenciais ofensas que permitirão aos estudantes denunciarem o
comportamento de colegas e professores. A lista compreende um vasto
conjunto de “micro-agressões”. Por exemplo, se um professor franzir o
sobrolho numa conversa com um estudante negro, isso será imediatamente
tomado como uma “micro-agressão” susceptível de ser denunciada e
convenientemente punida. O que é importante é que nada possa, em nenhuma
circunstância, ferir a “auto-estima” de qualquer minoria, étnica ou
outra. Na Califórnia, as escolas são encorajadas a guiarem-se, no ensino
da matemática, por um documento intitulado: “Um caminho para o ensino
equitativo da matemática: desmantelando o racismo no ensino da
matemática”. A defesa da equidade, tão cara a Joe Biden, passa aqui pela
destruição do mito da objectividade, que perpetua a supremacia branca e
a opressão das minorias através da convicção que existem “respostas
certas” e “respostas erradas”. Ora, não há respostas certas nem
respostas erradas. Dois mais dois não têm de ser quatro: podem ser cinco
ou um balão azul. Pretender o contrário é fazer prova do mais abjecto
racismo sistémico.
E
chegamos aqui a um ponto essencial. E esse ponto essencial é o da
redução da necessária luta pela igualdade entre entre negros e brancos,
ou entre homens e mulheres, a uma defesa extremada da subjectividade
como lugar por excelência de todas as virtudes. Da subjectividade
individual e daquilo que se poderia chamar a subjectividade colectiva
das minorias. Tudo o que se possa opor a essa subjectividade – em
grosso, aquilo que Freud chamava a prova da realidade – é visto como o
inimigo a abater. Se alguém lembrar que nenhuma sociedade pode
sobreviver, para continuar a falar como Freud, se se reger apenas pelo
princípio do prazer sem qualquer limitação pelo princípio da realidade,
tal proposição é imediatamente vista como demonstrando o tal pervasivo
racismo sistémico. Nenhum exemplo disto é talvez tão bom como o título
do programa que Harry – o velho Taki, na Spectator, chama-lhe Prince
Halfwit; eu chamo-lhe Príncipe Tadinho – e a horrenda Oprah Winfrey têm
em conjunto: The Me You Can’t See, “O Eu que não podes ver”. Está tudo
aqui. O egotismo primário. A afirmação de uma verdade superior na
profundidade do “detestável Eu” de que já falava Pascal. A delícia
obscura da auto-exposição, sem distância irónica alguma por relação a si
mesmo. A vontade nihilista de abolir um mundo que se recusa a
reconhecer-nos como o seu centro indisputável. “O Eu que não podes ver” é
“O Eu a que deves obedecer”.
É
em nome desse Eu – o Eu de cada um e o Eu colectivo das minorias – que
se constitui um mundo de censura, todo ele concentrado na busca dos
“crimes de ódio”, tão latamente entendidos que abarcam praticamente tudo
o que se quiser. É em nome desse Eu – Eu, Eu, Eu – que a liberdade do
discurso (“expressão” é um conceito mais ambíguo) é limitada dia após
dia, num enclausuramento progressivo da palavra. Francamente, já
estivemos muito mais longe do 1984 de Orwell. Pode-se ouvir a polícia do
pensamento a subir as escadas do nosso prédio. E ficamos a saber quem é
o Grande Irmão: é o Eu invisível, aquele que não podemos ver. Face à
sua omnipotência – como em Orwell e na grande canção esquecida de David
Bowie –, We Are the Dead.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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