A história da Democracia é em grande parte a saga de uma desmoralização anunciada. Artigo de Antônio Fernando Borges, especial para a Gazeta do Povo:
Se
você ainda acredita que o elogio dos “avanços tecnológicos” é um
imperativo moderno, está mais do que na hora de atualizar suas
configurações de avanço e de tecnologia. Aliás, perdoe-me estragar a
festa: no século IV a.C., o genial Aristóteles já advertia, em sua
Política: “Quando as ferramentas trabalharem sozinhas, os senhores não
precisarão mais de escravos — e o escravo desaparecerá”.
É
natural que o vínculo entre liberdade e tecnologia aponte para a
Antiguidade grega. Afinal, foi ali que brotou a ideia matricial de
Democracia, que hoje (mais do que em outras épocas) é a pedra de toque
de toda discussão política minimamente promissora. De um jeito ou de
outro, a maioria das palavras desse campo semântico aponta
inexoravelmente para ela. O problema — alerta de non sequitur! — é que
isso também coloca num mesmo balaio um bocado de gatos de raças
diferentes. Trocando em miúdos: democracia e liberdade podem até andar
juntas, mas é bom ter cautela na hora de as convidar para a mesma mesa.
Na
verdade, a história da Democracia é em grande parte a saga de uma
desmoralização anunciada. Mas, uma vez mais, engana-se quem pensa que o
estrago essencial é obra recente. Que tal visitarmos os gregos?
No princípio, era mesmo a Grécia...
Num
giro rápido capaz de espremer 25 séculos em poucas linhas, podemos
dizer que de fato, como reza a lenda, a ideia e a palavra democracia
surgiram na Antiguidade clássica, na cidade-estado de Atenas. E, sim:
desde seus inícios, o conceito designa o tipo de administração em que o
povo “toma as rédeas” de seus destinos e interesses, mediante reuniões
em praças públicas que decantam (nos dois sentidos) a suposta vontade da
maioria, elevada idealmente no comando para então decidir por todos.
Nossa súmula histórica indica também que o termo caiu em desuso na Idade
Média, só voltando a renascer das sombras por volta do século XVIII,
durante as revoluções burguesas que eclodiram no ocidente (a Francesa e a
Inglesa, para citar as mais notórias). Por fim, no século XX, voltou a
despertar interesse, sobretudo a partir da década de 1950, mas dessa vez
num cenário de terra arrasada após duas Grandes Guerras e uns tantos
conflitos violentos e pontuais.
A
cada passo, o ponto frágil deste ídolo de barro parece sempre o mesmo:
as proverbiais maiorias de que falam os livros nunca foram lá tão
“maiores”. Mesmo no âmbito das cidades-estado gregas, a ideia não
correspondia ao que os dicionários definem:
“Maioria, s. f., Segmento de um conjunto maior que reúne a maior quantidade de elementos; o maior número; pluralidade.”
Em
Atenas, por exemplo, a “maioria” capacitada a governar se limitava aos
chamados cidadãos. Ou seja: apenas homens livres e maiores de 18 anos
que tivessem propriedades e fossem gregos naturalizados podiam opinar
nas assembleias ou atuar na vida política. Ficavam automaticamente
excluídos as mulheres e as crianças, os estrangeiros e os escravos. E de
lá para cá, nada mudou tanto assim. Ainda hoje, não se pode afirmar de
forma irrestrita que a Democracia é o governo de todos. A rigor, talvez
nem mesmo da “maioria”.
Ao
longo dos tempos, mesmo no plano conceitual (que costuma anteceder e
antecipar a ação concreta), a Boa Nova democrática nunca desfrutou de
opiniões unânimes e lisonjeiras. Já na alvorada da civilização, o
historiador grego Políbio (203 a.C.-120 a.C.) foi pioneiro em apontar o
perigo que lhe parecia implícito nessa forma de governo. A páginas
tantas de seu clássico 'Histórias', ele cunhou o conceito de Oclocracia,
para nomear aquilo que considerava uma variante "mórbida” ou
“patológica" do governo popular. Do grego transliterado okhlokratia
(literalmente, “governo da turba”), o neologismo de Políbio tem servido
desde então para definir também as formas de abuso que se instalam num
governo “democrático”, quando a multidão se assenhora dos negócios
públicos, a ponto de intimidar as autoridade legítimas. Em breve
síntese: oclocracia é a ausência (ou “falência múltipla”) do processo
democrático. Desde então, a ideia original nunca mais foi a mesma.
Se
a imagem que lhe vem à mente é a da Revolução Francesa, com suas hordas
violentas e sanguinárias, você acertou em cheio, caro leitor. Aquilo
que o historiador grego vislumbrou como redutio ad absurdum do ideal
democrático acabou saltando para as ruas e vielas francesas, num
pesadelo em plena luz do dia. Em seus ouvidos, ecoavam por certo as
ideias delirantes de um Jean-Jacques Rousseau, que com sua leviandade
costumeira repetia, na contramão das próprias atitudes nada exemplares:
“Se houvesse um povo de deuses, esse povo se governaria
democraticamente”. Foi por certo a pretensa superioridade de deuses do
Olimpo que acabou por justificar o morticínio torrencial daqueles loucos
anos. O resto é História — e muitos cadáveres, e uma confusão
irreparável.
Vale
insistir: no plano das ideias — da chamada “vida por escrito” —, o
elogio rasgado da Democracia pode ter sido até intenso e extenso, mas
nunca foi feito (nem levado) muito a sério. No geral, limitou-se aos
arroubos histriônicos, misturando exagero e comicidade. Por exemplo: o
sempre espetaculoso presidente Lincoln (que por ironia poética seria
assassinado num teatro) deve ter lançado um olhar discreto ao redor para
conferir o efeito de suas célebres palavras: “A democracia é um governo
do povo, para o povo e pelo povo”.
Em
qualquer antologia de citações sobre o tema, sempre haverá destaque
para um Churchill, com seu sarcasmo de ribalta, a entoar que a
democracia é “a pior forma de governo, com exceção de todas as outras
experimentadas de tempos em tempos pelos homens”. Aliás, apesar de
moderados nos hábitos, os ingleses nunca economizaram veneno na hora do
“elogio” da Democracia. Lorde Byron, por exemplo, o expoente do
movimento romântico, revelou-se ao mesmo tempo realista e imaginoso: “O
diabo foi o primeiro democrata”. E, sem sair ainda das fronteiras
britânicas, o pensador liberal Thomas Macaulay expressou desconfiança
bem semelhante: “Faz tempo que estou convencido de que, mais cedo ou
mais tarde, as instituições puramente democráticas vão destruir a
liberdade ou a civilização — ou quem sabe as duas”.
Franceses
também não deixaram por menos. O escritor Georges Bernanos que o diga:
“A democracia não é o oposto da ditadura: é sua causa”. (Basta ver como a
noção de direitos humanos impõe agora às pessoas novas formas tirânicas
de controle do comportamento: Bernanos estava dizendo mais do que um
mero jogo de palavras.) E haveria ainda Alex de Tocqueville, autor não
de uma ou duas frases, mas de livros inteiros sobre o assunto — em
especial, 'Da Democracia na América' e 'O Antigo Regime e a Revolução',
mostrando como os ideais democráticos não eram solução, mas faziam parte
do problema.
Do
lado de cá do Atlântico, a Democracia não se saiu melhor. O estadista
americano Benjamin Franklin, paladino das liberdades, nem por isso
economizou veneno e acidez: “Democracia são dois lobos e uma ovelha
decidindo sobre o que comer no jantar”. E Thomas Jefferson, principal
autor da declaração de Independência dos Estados Unidos, acrescentaria
que a democracia “não é nada mais do que a ditadura da multidão, onde
51% das pessoas podem tirar os direitos dos outros 49%”. O argentino
Jorge Luís Borges, conservador assumido, é igualmente direto: “A
democracia é um erro estatístico, porque nela a maioria decide, e a
maioria é composta de imbecis”.
Fechando
essa algazarra de citações patentemente engraçadas, também existe lugar
para o humor profissional — e aqui podemos citar dois mestres no
assunto. De um lado do oceano, o britânico Bernard Shaw: “A democracia é
apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes”. Do
outro, a pitada ferina do irreverente Millor Fernandes: “O problema da
democracia é que ela acaba sempre na mão dos democratas”.
Na
vida real ou na lenda, na História ou na Literatura, não é difícil
concluir que a Democracia nunca saiu muito bem na fita, no verdadeiro
longa-metragem de sua trajetória, com vários finais sugeridos, mas sem
chance de unanimidade. Em suma, a forma de governo que preconiza o
consenso está muito longe de ser… consensual. Talvez haja um único ponto
em que todos concordam (ou pelo menos a proverbial “maioria”): para o
bem e para o mal, um fantasma ronda o Teatro da Democracia – o fantasma
do igualitarismo.
“Liberté, Egalité, Fraternité”
Os
Revolucionários franceses fizeram de tudo para nos convencer de que
Liberdade e Igualdade caminham pela mesma trilha, num doce compasso
“fraternal”. Para piorar as coisas, a confusão também foi consagrada nos
dicionários, onde o verbete Democracia contempla tanto a ideia de
“Governo em que o povo exerce a soberania direta ou indireta” quanto a
de “Igualdade política e social”.
De
um jeito ou de outro, desde a Grécia Antiga a igualdade vem sendo
apregoada como um dos pilares teóricos da Democracia. Nas atuais
Constituições democráticas, isso costuma encabeçar a lista de “direitos
fundamentais do homem” — e não é diferente com a nossa Constituição
Federal, cujo Artigo 5o. Etc., estabelece: “Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, etc., etc.”. Mas, apesar de ser
defendido na letra da lei como “a fórmula ideal” da Democracia, na
prática o casamento Liberdade-Igualdade raríssimas vezes aconteceu. (E o
uso do superlativo – raríssimas – corre por conta do “benefício da
dúvida”, pois a memória é falha, e o mundo sempre é um vasto mundo…)
Liberdade
e igualdade não frequentam a mesma mesa. Sociedades livres nunca são
igualitárias. E, definitivamente, sociedades igualitárias nunca são
livres. Parece que a igualdade (ou melhor, sua falta) constitui o ponto
cego que ninguém consegue controlar, na hora de seguir em frente. Fazer o
quê, então? Desde já, arrisco-me a dizer que nenhuma solução
milenarista ou messiânica servirá de remédio. Mas também não é justo ou
necessário que este seja o fim do artigo — e muito menos o fim da
Democracia, relegada ao ostracismo ou aposentada como se fosse um
brinquedo inútil.
Fazer
o quê, então?... Digamos que a saída mais clara — não a mais fácil —
seja a de superar a ideia obsessiva de igualdade, mas sem cair em novas
falácias como “autogestão” ou “diversidade” (de longe, a pior de todas).
E para isso o estatístico italiano Corrado Gini pode vir em nosso
auxílio, com uma ferramenta criada em 1912 mas que até agora não é muito
aplicada fora dos campos da Lógica e da Matemática: o seu Coeficiente
de Gini, que calcula os graus de desigualdade de um país.
Em
linhas gerais, o Coeficiente de Gini consiste em um número entre 0 e 1,
onde 0 corresponde à completa igualdade (no caso de rendimentos, por
exemplo, toda a população receberia por hipótese salários iguais) e 1
expressa a desigualdade total (onde uma pessoa recebe todo o rendimento e
as outras nada recebem). Talvez fique mais fácil de entender se
multiplicarmos o número do coeficiente por 100 — já que de percentagens
todos entendemos um pouco… Vamos também pular a parte maçante dos
cálculos e chegar direto ao resultado: o próprio coeficiente.
Dando
um exemplo concreto, vamos comparar a situação econômica da Etiópia e a
dos Estados Unidos. Ao longo das últimas décadas, o país africano tem
alcançado uma pontuação média de 0,3 (ou 30%) enquanto os Estados Unidos
atingem a casa de 0,4 (ou 40%). Nesse sentido, de acordo com o
Coeficiente de Gini, a Etiópia seria cerca de 10 pontos percentuais mais
igualitária do que os EUA. Até aqui, todas as sociologias chegaram —
mas o “pulo-do-gato” do próprio estatístico italiano fica por conta de
suas conclusões: apesar de tudo, qualquer pessoa vai preferir a
desigualdade americana à etíope. Em outras palavras, é melhor ser pobre
na América do que na África… Vejam como a ideia de Democracia ganha um
novo fôlego quando consideramos que o problema principal não é a
desigualdade, mas a pobreza — sobretudo a extrema pobreza, que se
aproxima da miséria.
Será
mesmo possível encontrar uma alternativa à Democracia? Uma sociedade
sem um Estado dominante — em suma, uma sociedade livre e cooperativa?
E o futuro? Ou: Indo além da Democracia
O
historiador americano Thomas E. Woods observa que a liberdade política é
mais factível onde existirem “jurisdições menores e mais liberais”. E
aponta como exemplo a própria história da Europa Ocidental, onde a
fragmentação num punhado de pequenos países permitiu que as pessoas
fugissem de lugares onde a opressão reinava e fossem para áreas mais
liberais. Se isto já foi possível no passado, atualmente poderá parecer
uma vaga utopia — mas deixa de ser utópico se ponderarmos que já existe
(e em pleno funcionamento) um modelo equivalente de descentralização.
Acertou quem disse: a internet.
Mais
do que o sistema democrático em si, arrisco-me a dizer que as novas
tecnologias da web têm grande potencial para se tornarem uma força
“democratizadora” — não nos termos de uma capilarização do poder, mas
como sua fragmentação até torná-lo inócuo. Para maiores detalhes, leiam o
pequeno livro 'Além da Democracia', de Karel Beckman e Frank Karsten —
que traz o subtítulo provocador “Por que a democracia não leva à
solidariedade, prosperidade e liberdade, mas sim ao conflito social, a
gastos descontrolados e a um governo tirânico” (o grifo é meu).
Lançado
há quase dez anos (o que já o torna um tanto “obsoleto”) 'Além da
Democracia' pode ser acusado de obsolescência precoce, na medida em que
passa ao largo das mudanças velozes perpetradas por tiranos, hackers e
criaturas da dark web, entre outros inimigos do Bom, do Verdadeiro e do
Belo — pois a esta altura é melhor elevarmos definitivamente nosso
referente teórico ao patamar de virtudes, acima de mesquinharias
políticas. Mas onde muitos podem enxergar agora uma “visão ingênua e
ultrapassada”, prefiro degustar o opúsculo de Beckman-Karsten como uma
pitada de otimismo, um gole de esperança. Não é disto que estamos
precisando agora?
“Creio
que um dia mereceremos que não haja Governos”, sentenciou Borges, no
mesmo texto em que fez profissão de fé de seu conservadorismo. O exímio
Cego argentino enxergava longe: de fato, conservadores advogam
princípios e padrões morais — não sistemas políticos. Se a democracia
concede a uma “maioria” o direito de governar sobre todas as minorias,
quem sabe os avanços tecnológicos, incessantes e imprevisíveis por
definição, venham a oferecer ao indivíduo o poder de conduzir e
gerenciar suas vidas livremente... Enfim: se a democracia confiscou o
poder das pessoas, a tecnologia talvez seja capaz devolver, numa forma
descentralizada – o que, aliás, é inerente à própria estrutura da
internet. Não era isso o que o velho Aristóteles estava dizendo, ao
relacionar tecnologia e liberdade? Fica a dica... Mas certamente isto já
é assunto para um outro artigo. O que eu quis escrever termina aqui.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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