Para se aproximar do “povo”, o presidente Haddad faria transmissões nas quais, empunhando seu violão, tocaria canções especialmente compostas por Chico Buarque, tratando dos problemas mais graves enfrentados pelo brasileiro, como a transfobia e gordofobia. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff Jr.:
Recebo
uma carta. Não sei como descobriram meu endereço, mas recebo. É um
envelope neutro com um selo padrão dos Correios. Saudade de quando os
Correios emitiam uns selos bonitões que iam direto para a água com
vinagre e, depois, para a minha coleção. Meio desnorteado com aquele
meio primitivo de comunicação, abro apressadamente o envelope para
descobrir dentro dele um tratado que consome 3 papéis-de-carta dos
Ursinhos Carinhosos.
Assina
a missiva uma tal Linda Pretty. A letra é trêmula e insegura, mas evito
tirar conclusões apressadas disso porque faz tempo que não escrevo à
mão, então é possível que minha letra parecesse tão trêmula e insegura
quanto. Ao longo das páginas, ela faz uma longa defesa do PT (“um
partido social-democrata – única ideologia que deu certo no mundo”) e de
Lula (“só quem ataca Lula é quem nunca olhou dentro daqueles profundos
olhos castanhos”). Mas não de Dilma. (“Se não fosse por ela, talvez o
Brasil pudesse estar vivendo hoje um segundo mandato de Aécio. Já
pensou?”, escreve Pretty, Linda).
A
letra vai se amiudando à medida que a carta avança. Tanto que, no
parágrafo final, aquele que nos interessa aqui, estou quase buscando uma
lupa para tentar decifrar as marcas no papel. Dois borrões mais ou
menos paralelos me fazem pensar que talvez Linda Pretty estivesse
chorando ao me escrever. Que dó. De qualquer forma, lê-se ali, pouco
antes do “XXOO”:
“Como
o senhor bem sabe, ou parece saber, o Brasil é o país do ‘se’. Estamos
sempre pensando no que teria sido dessa nação SE 1) Napoleão não tivesse
invadido Portugal, 2) o Marechal Deodoro tivesse ficado em casa, de
pijamas; 3) Getúlio não tivesse dado um tiro no peito; 4) a guerrilha do
Araguaia tivesse ganhado a guerra; 4) Tancredo não tivesse morrido
antes da posse; 5) Lula tivesse ganhado de Collor; e, finalmente, se 6)
naquela salinha secreta lá do TSE alguém tivesse encontrado uma forma de
tornar o Haddad vencedor”.
Um país esteticamente perfeito
Minha
reação imediata foi jogar a carta num canto e dizer para uma Catota
bastante compenetrada que é besteira imaginar como seria o Brasil se
certos eventos do passado não tivessem ocorrido exatamente como
ocorreram. “Em retrospecto, o passado é sempre inevitável”, como tuitou
Elon Musk, provavelmente citando alguém. Bolsonaro era inevitável, a
facada era inevitável, a vitória era inevitável. E tudo o que aconteceu
desde então era inevitável.
Mas
atiçar a minha imaginação é mais fácil do que acalmá-la. Me deito na
esperança de pegar no sono rapidamente, como sempre acontece, mas assim
que fecho os olhos dou uma de Alice e entro na toca de coelho das
fantasias políticas. E não consigo dormir. Fico imaginando o governo
Haddad em todos os seus aspectos, macros e micros, e chego à conclusão
de que o Brasil seria um lugar muito melhor. Não necessariamente em
termos reais e palpáveis. Mas, em se tratando de estética, ah, quanta
diferença.
Veja
o caso do estudo obscuro que considerou o Brasil o pior país do mundo
todinho no trato da pandemia. Essa vergonha jamais passaríamos com o
presidente Haddad. Não que o Brasil estivesse cuidando melhor dos
doentes. É que, esteticamente, estaríamos mais próximos do que os
progressistas (petistas, psolistas e outros istas) consideram o ideal.
Não só Haddad falaria as coisas certas (texto finamente redigido por um
corpo de redatores experientes na manipulação da realidade) como também
teríamos os maiores e mais caros hospitais de campanha do mundo. E viva o
SUS!
Também
as manchetes seriam diferentes. A sinovacina estaria sob um escrutínio
maior porque, afinal, é coisa do PSDB. Se bem que também é coisa da
aliada China. Ah, sei lá. Só sei que o chanceler Jean Wyllys daria um
jeito. Os números absolutos de mortos seriam substituídos pelas
proporções. E, se o presidente-professor sugerisse que quem sabe talvez
numa dessa o tal do tratamento precoce funciona, bom, temos que
investigar isso aí. “Não podemos tirar conclusões apressadas”, diria o
ministro Iamarino. A única objeção talvez fosse feita pelos defensores
da homeopatia e cromoterapia.
Nas
eleições legislativas também a situação seria muito diferente. Até
porque rumaríamos tranquilamente para um terceiro mandato de Sir Rodrigo
Maia – por ordem e graça do ministro José Eduardo Cardozo,
recém-nomeado para o Supremo Tribunal Federal pelo presidente Fernando
Haddad.
Estaríamos,
ainda, livres daquelas horríveis lives de Jair Bolsonaro. Com aquela
gente jeca e sem talento. Para se aproximar do “povo”, o presidente
Haddad faria transmissões nas quais, empunhando seu violão, tocaria
canções especialmente compostas por Chico Buarque, tratando dos
problemas mais graves enfrentados pelo brasileiro, como a transfobia e
gordofobia. Eu disse problemas? Devo estar ficar louco. Que problemas?!
Afinal, é da administração Haddad que você está falando, Paulo.
O imperfeito participa, sim, do passado
Acordo
meio assustado. São 23 horas da madrugada. Por impulso, pego o celular
no criado-mudo (termo que a administração Haddad proibiu) e entro nas
redes sociais para ver o que está acontecendo. De cara me deparo com
pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro, liberação recorde de emendas
parlamentares (coisa que jamais aconteceria com o presidente-professor),
xingamentos de “genocida”. Suspiro, entre a resignação e o alívio.
De
volta à realidade inexorável e insubstituível, me levanto e saio pela
casa à procura de papel e caneta (como é que se usa esse negócio?) para
responder à sra. Linda Pretty que, ao contrário do que dizia Renato
Russo, o imperfeito participa, sim, do passado. E que bom que é assim.
Afinal, é a imperfeição desse passado, composto por zilhões de
presentinhos que vão ficando para trás a cada nanossegundo, que permite
que abdiquemos da elucubração danosa e risível do futuro do pretérito e
seu irmão ainda mais perverso, o pretérito imperfeito de um subjuntivo
cheio de mágoa, revanchismo e utopia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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