Foi por meio das aventuras de um personagem infantil chamado Billy Bunter que tive contato com a ideia de Brasil. Via Oeste, Theodore Dalrymple:
A
primeira vez que tomei conhecimento da existência da Argentina — The
Argentine, como a chamávamos na Inglaterra naquela época — foi pelos
selos. Em especial, eu me lembro dos de Eva Perón: e com base neles
achei que ela era a mulher mais linda e gloriosa do mundo.
A
primeira vez que tomei conhecimento da existência do Brasil foi
diferente. Foi por meio de um livro chamado Billy Bunter in Brazil
(Billy Bunter no Brasil). Como o objetivo do livro era mais entreter do
que educar, a descrição do país era um pouco rasa. Ele foi publicado no
ano de meu nascimento, 1949, e eu o li dez anos depois.
Aluno
ficcional de um colégio interno, Billy Bunter era gordo, míope e burro.
Ele usava óculos redondos de armação grossa e era conhecido como “Fat
Owl”, ou Coruja Gorda. E era sempre alvo das piadas dos colegas de
classe. Bunter também tinha uma origem social inferior em relação a
eles, o que o fazia compensar de um jeito estúpido, gabando-se da
magnífica casa dos pais, que na verdade era bastante modesta. Ele
constantemente pegava dinheiro emprestado dos demais porque não tinha
nada, ainda que afirmasse constantemente que ia receber dinheiro na
próxima remessa do correio. Sempre que encontrava um bolo, ele cortava
uma pequena fatia e comia o resto.
Naqueles
tempos, eram poucas as crianças muito gordas — eu só me lembro de duas
na minha infância inteira — e a obesidade ainda era considerada uma
falha individual (ou talvez culpa das “glândulas” da criança), em vez de
uma questão de saúde pública, como é agora. Billy Bunter era gordo
porque era guloso, e nenhuma outra explicação era necessária.
Billy
Bunter foi inventado como personagem em 1908 pelo autor Frank Richards,
que, sob uma variedade de nomes, acredita-se ter escrito mais palavras
do que qualquer outro autor na história da humanidade — cerca de 100
milhões, pelo que se diz, ainda que imagino que ninguém as tenha contado
com exatidão. As histórias de Billy Bunter continuaram populares na
Inglaterra até a revolução cultural dos anos 1960. Meu pai as tinha
apreciado tanto na sua infância quando eu na minha.
George
Orwell escreveu um ensaio famoso criticando histórias como as de Billy
Bunter, que afirmava serem esnobes e conservadoras. Mas Frank Richards
era um homem inteligente e de boa formação, apesar do fato de só ter
escrito histórias infantis, e respondeu a Orwell, sem dúvida ganhando a
discussão. Richards disse que escrevia apenas para entreter as crianças
de forma inocente; e o fato de crianças de todas as classes sociais
terem gostado de suas histórias durante quarenta anos sugeria que ele
tinha sido bem-sucedido. (O autor teria sido um homem muito rico, se não
fosse um devoto da roleta e não gastasse boa parte de seu dinheiro em
um cassino em Monte Carlo.)
Ainda
que Frank Richards tivesse escrito suas histórias por meio século,
Billy Bunter nunca cresceu nem teve nenhuma mudança. Sua idade e seu
caráter, seu jeito de se vestir, seus hábitos, suas expressões e seus
gostos eram exatamente os mesmos cinquenta anos depois de sua primeira
aparição: sua atemporalidade era o que ele tinha de tão reconfortante.
Apesar de mentiroso, desonesto, egoísta, ganancioso e burro, também
existia algo curiosamente inocente nele. Mesmo com suas falhas e seus
defeitos, não havia nada de fato detestável em Billy Bunter. Pelo
contrário, ficávamos felizes com sua existência porque ele aumentava
nossa alegria de viver. Havia esperança para nós; nossas falhas e
imperfeições não significavam que não tínhamos valor.
Olhando
para trás mais de sessenta anos depois, hoje vejo que existia um
elemento considerável de crueldade quando ríamos de Billy Bunter, que
era tão digno de dó quanto de zombaria. Pobre Bunter! Ele talvez nunca
tivesse se sentido bem consigo mesmo, sempre cercado por garotos mais
magros, mais inteligentes e mais ricos, confrontado dia após dia com a
própria inferioridade. Mas as crianças são cruéis e muitas vezes riem do
outro sem consideração por nada mais profundo.
Bunter
vai para o Brasil em 1949 e descobre uma terra prometida em comparação
com a Inglaterra que deixou para trás, onde os alimentos ainda eram
racionados. (Depois da guerra, o racionamento na Inglaterra acabou em
1953.) Bunter não tem nenhuma curiosidade sobre nada além do horário da
próxima refeição. Infelizmente para o personagem, no entanto, ele fora
convidado para ir ao Brasil, junto com outros de sua classe, por um
colega, Lord Mauleverer, cuja família aristocrática tinha uma
propriedade no Estado de Mato Grosso administrada por um primo, Brian
Mauleverer. O local se chama Quinta Branca, onde as condições, para além
da comida, não são exatamente do gosto do personagem. Em um passeio rio
abaixo, por exemplo, Bunter, que está muito cansado (ele raramente vai a
qualquer lugar que não seja a rede mais próxima), se senta no que
considera ser um pedaço de tronco, mas na verdade é um enorme jacaré.
Ele é alvo de insetos e suas picadas, o que Bunter considera injusto,
sem nunca se dar conta de que o motivo é estar coberto de caldo de cana
ou puxa-puxa.
A
trama do livro é, como você pode imaginar, boba. Quando chega à Quinta
Branca, a comitiva inglesa descobre que o administrador não está lá.
Eles são recebidos por Martinho Funcho, o adjunto, charmoso e agradável
de um jeito bajulador, mas que sequestrou e aprisionou Brian Mauleverer
na esperança de ser apontado administrador em seu lugar e poder desviar
os fundos da quinta para pagar suas dívidas no cassino mais próximo (o
personagem obviamente tinha algo em comum com o autor). Funcho está em
conluio com um bandido chamado O Corvo, mas, naturalmente, os destemidos
estudantes ingleses salvam Brian dos brasileiros malvados e os entregam
à Justiça. Só que, no fim, Bunter não quer ir embora do Brasil porque,
ao contrário da Inglaterra, a manteiga é abundante no país. Billy Bunter
não é nem patriota nem está com saudade de casa. Assim, ele precisa ser
arrastado pelos amigos até o avião.
O
livro foi a base bastante frágil de minha descoberta do Brasil. Mas sua
releitura não foi uma perda de tempo completa. Além de um retorno
nostálgico à infância, eu tinha esquecido que até mesmo no ano de meu
nascimento o uso do termo nigger em inglês era inaceitável para pessoas
decentes. Quanto Bunter se refere ao mordomo da quinta como “that
nigger”, os colegas lhe dizem para não falar assim. Quando ele o faz de
novo, um deles lhe dá um chute no traseiro. E, infelizmente para Bunter,
é difícil errar seu traseiro.
Theodore
Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels.
Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas.
Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações),
estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca
Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador
contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de
imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.
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