O que está em jogo no debate sobre o poder dos gigantes da tecnologia. Telma Santa Cruz para a Oeste:
O
embate, transmitido dias atrás de uma das salas do Congresso
norte-americano, foi constrangedor. De um lado, na ofensiva, o poderoso
senador Ted Cruz, do Texas, estrela do Partido Republicano. Do outro, um
dos fundadores do Twitter, Jack Dorsey, acusado de usar a plataforma
para censurar posts de conservadores, incluindo os do presidente Donald
Trump, e de bloquear notícias negativas sobre o seu rival, o democrata
Joe Biden, a fim de influenciar a eleição presidencial. “Quem diabos
elegeu você ou lhe deu o direito de decidir o que a mídia pode ou não
divulgar, o que povo norte-americano pode ou não saber?”, vociferou
Cruz, durante uma sabatina na Comissão de Comércio sobre a atuação das
mídias sociais, após listar uma série de evidências de censura e
parcialidade por parte do Twitter.
Nocauteado
pela contundência do ataque, Dorsey titubeou na resposta. Mas sua
expressão pusilânime — compondo, com os cabelos desgrenhados, a longa
barba e um piercing no nariz, o figurino típico de hippie datado —,
junto com o tom agressivo do interrogatório, deu a medida da enorme
onda de rejeição que os gigantes da tecnologia passaram a enfrentar, nos
últimos meses, em quase todo o mundo. Uma antipatia generalizada que se
transformará em artilharia pesada daqui para a frente, tanto nos EUA
quanto na Europa, com o anúncio, no mês que vem, pela Comissão Europeia,
de uma nova legislação draconiana, o Digital Services Act, que deve
reformular radicalmente o mercado de tecnologia.
Já
incomodados há tempos com as empresas norte-americanas, acusadas de
explorar brechas da lei a fim de pagar impostos reduzidos no continente,
os europeus prometem agora partir de vez para o ataque, sob o argumento
de favorecer a concorrência em seu território e garantir maior
transparência para os consumidores na utilização de dados pessoais.
Estamos diante, nesse sentido, de uma reviravolta de 180 graus na
reputação — e provavelmente no futuro — das campeãs da tecnologia.
Reverenciadas até há pouco tempo como símbolos de inovação e dos
benefícios da revolução digital, empresas como Apple, Amazon, Facebook e
Alphabet — proprietária do Google — passaram a ser tratadas, não só
por governos, mas também pela grande mídia e certos círculos
intelectuais, como os quatro cavaleiros do apocalipse, o vilão da vez.
As
acusações cobrem uma extensa lista de supostos malfeitos, tanto na
esfera política quanto na comercial: manipulação da opinião pública e
interferência em processos democráticos, como revelado pelo escândalo da
Cambridge Analytica; práticas monopolistas, concorrência desleal e
lucro indevido com a venda de dados dos usuários, para ficar apenas nos
desvios mais apontados. Para críticos radicais, como se viu no
documentário O Dilema das Redes, da Netflix, as mídias sociais seriam
nocivas também, quase como distribuidores de drogas entorpecentes, por
viciar as pessoas, sequestrar seu tempo e manipular seu comportamento.
“Não
tenho dúvidas de que as plataformas e os algoritmos que elas usam podem
ter um impacto incomensurável na maneira como vemos o mundo à nossa
volta”, alega a chefe do setor de competição da Comissão Europeia,
Margrethe Vestager. “Precisamos saber como elas decidem o que iremos ver
em suas páginas.” Esse tipo de cobrança tem sido reforçado, inclusive,
por antigos altos executivos da indústria, que fizeram fortuna no Vale
do Silício, mas agora se confessam arrependidos por ter participado do
que chegou a ser celebrado, no advento da internet, como uma empreitada
quase heroica de expansão do horizonte humano. É o caso do
ex-vice-presidente da Amazon Tim Bray, um dos mais ferrenhos opositores
da empresa.
A
alegação é que, enquanto nos hipnotizavam com uma infinidade de
produtos e serviços surpreendentes, hoje tão imbricados em nossa vida
que parece impossível viver sem eles, as Big Techs teriam acumulado um
poder tão descomunal que chega a ser comparável, se não maior, ao de
muitos Estados nacionais, na visão de um dos principais estudiosos da
internet, o filósofo Pierre Lévy. Com a agravante de seu domínio dar-se
num segmento de mercado que é crucial para todos os outros, em vista do
papel da tecnologia como sustentáculo da economia digital.
Nos
Estados Unidos, tanto o Departamento de Justiça quanto a Câmara dos
Deputados e o Senado, como se viu pelo teor da sabatina do dono do
Twitter, também assestaram suas armas nas últimas semanas na direção de
Apple, Amazon, Facebook e Alphabet/Google — empresas que, juntamente com
a Microsoft, alcançaram juntas, no início do ano, o espetacular valor
de US$ 5 trilhões — inferior apenas, à guisa de comparação, ao PIB dos
Estados Unidos e da China, e três vezes maior que o brasileiro.
A
investida vai na mesma direção de impor limites à atuação dos quatro
gigantes, reduzir seu tamanho, ou fragmentá-los em companhias menores
por meio de processos antitruste, como já ocorreu no passado em relação a
outros colossos norte-americanos como a American Telephone &
Telegraph (AT&T), a IBM e a Microsoft, entre outros. Essas são
algumas das recomendações de um relatório da Comissão de Justiça da
Câmara dos Deputados divulgado no mês passado, após quinze meses de
investigação. O qual, por sinal, foi implacável na condenação dos
conglomerados, chegando a comparar seus dirigentes aos robber barons,
termo pejorativo usado para denegrir os poderosos capitães das
indústrias siderúrgica, de petróleo e ferrovias, no final do século 19.
Em
paralelo, o Departamento de Justiça, em sua primeira ação contra uma
empresa de tecnologia em vinte anos, abriu um processo contra o Google,
por monopolizar serviços de busca e publicidade. E a Comissão Federal de
Comércio está finalizando um processo similar contra o Facebook,
acusado de impedir a concorrência pela compra sistemática de
competidores, a exemplo das aquisições do Instagram e do WhatsApp.
Num
raro movimento bipartidário, congressistas estão se mobilizando,
também, para tornar a legislação antitruste mais severa e abrangente,
além de reforçar a atuação das agências reguladoras — que teriam
acompanhado impavidamente o crescimento exponencial das Big Techs
enquanto estas engoliam os rivais. Porém, enquanto os europeus,
tradicionalmente intervencionistas, se mostram determinados sobre que
medidas adotar, os norte-americanos, mais afeitos à livre-iniciativa,
movem-se de forma mais cautelosa.
Levando
em conta a complexidade da indústria de tecnologia, e sobretudo a
importância estratégica de suas plataformas, um bom número de
especialistas alerta para o risco de uma intervenção excessiva ou mal
equacionada acabar comprometendo o vigor e a capacidade de inovação do
segmento. E prejudicando, em consequência, os consumidores que se
pretende proteger, ao restringir a oferta e a evolução dos serviços e
produtos digitais.
Segundo
esse ponto de vista, tais riscos seriam particularmente preocupantes no
atual momento de maturidade alcançado pela indústria, após anos de
desenvolvimento — durante os quais, vale lembrar, algumas companhias
mantiveram um fluxo intenso de investimentos sem perspectiva de retorno
imediato, devido à dificuldade de monetizar os serviços que ofereciam
gratuitamente.
A
pandemia contribuiu para valorizar ainda mais as Big Techs, ao acelerar
a digitalização da economia e da vida, ampliando a utilização do
e-commerce, das plataformas de trabalho e ensino remoto, além do
entretenimento via lives e streaming. Dá para imaginar como teria sido
enfrentar o lockdown sem internet? Tudo indica que o processo de
digitalização continuará avançando, o que demandará novas levas de
produtos e serviços tecnológicos.
Outro
temor, nos Estados Unidos, é fragilizar as Big Techs justamente quando
elas enfrentam a concorrência cada vez mais acirrada das suas rivais da
China, apoiadas pelo Partido Comunista Chinês e livres, portanto, dos
controles próprios dos regimes democráticos. Com a tecnologia no centro
da disputa geopolítica entre as duas potências pelo mercado global, as
questões de segurança ligadas à expansão das companhias chinesas não são
desprezíveis. Afinal, as plataformas estão na base de inúmeros serviços
públicos em áreas essenciais como saúde e defesa.
Como
fica claro, um debate como esse, envolvendo tantas variáveis críticas,
requer ponderação e racionalidade. Veja-se a polêmica sobre o bloqueio
de conteúdos nas mídias sociais. No Brasil, como na Europa, há um forte
clamor por leis para combater as alegadas fake news ou os chamados
“discursos de ódio” — que, como se sabe, não passam, em geral, de
opiniões contrárias às de quem reclama —, com a terceirização da função
de censores para as plataformas ou “agências de checagem”. Já nos
Estados Unidos, onde a liberdade de expressão é valor consagrado,
prevalece a opinião de que elas não têm competência para decidir sobre
que informações podem ser acessadas pelos cidadãos.
A
coisa toda fica ainda mais complicada devido à atual polarização
ideológica. Para os anticapitalistas rasteiros, os conglomerados
tecnológicos encarnam a ganância e a desumanidade que estariam na
essência do sistema, ao “colocar o lucro à frente das pessoas”, conforme
acusam alguns entrevistados do documentário da Netflix — como se se
tratasse de dimensões excludentes. Movidos pelo pensamento binário, numa
dicotomia maniqueísta, os radicais fingem ignorar — sem abrir mão de
seus smartphones, suas compras na Amazon ou seu tempo no WhatsApp — a
espetacular contribuição das Big Techs à evolução social. E o fato de
que elas ajudaram a promover, em apenas duas décadas, a integração de
bilhões de pessoas a uma rede global de conexões e informação
descentralizada, que democratiza a comunicação, o acesso ao conhecimento
e aos mercados.
Isso
não significa que os gigantes devam continuar operando sem nenhuma
fiscalização ou controle. Apenas que esse debate, em que há tantos
interesses em jogo, não pode ser simplório ou emocional. Ao longo da
História, afinal, as novas tecnologias sempre causaram disrupções e
desconfortos. Sócrates, por exemplo, temia que a disseminação da escrita
pusesse em perigo o conhecimento contido na memória. O relógio foi
recebido com apreensão, pois poderia desorganizar a vida, até então
regrada apenas pelo ritmo da natureza. A revolução da imprensa de
Gutenberg, por sua vez, ao disponibilizar a leitura para além dos
círculos das elites, mobilizou legiões de críticos e deu origem à
Reforma e às revoluções liberais.
Já
no início do século 19, os luditas tentaram impedir a revolução
industrial na Inglaterra quebrando teares e máquinas. E, mais
recentemente, a vilã foi a televisão, que, ao viciar as crianças em
desenhos animados, criaria uma geração de descerebrados, lembram? Entre
os luditas contemporâneos, os tecnófobos, e os tecnófilos adoradores
incondicionais da tecnologia, a resposta parece estar em algum ponto no
meio do caminho. Mas os radicalismos e a ideologia só nos afastam dele.
O
único jeito de encontrar soluções nesse dilema é por meio da
informação. E, para isso, hoje dependemos mais do que nunca dela mesma, a
tecnologia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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