É uma história de Itália, da Europa e de um período fundamental do século XX contado a partir do ponto de vista de um dos seus mais trágicos protagonistas. O Observador entrevista o autor de O Filho do Século:
Os
mais sisudos que não se deixem enganar pela classificação. Pouco tem de
romance esta biografia romanceada de Mussolini, um monumental primeiro
de três volumes, sobre a ascensão do fascismo. Mais sóbrio do que muitas
monografias histórias, o livro entra com grande pormenor nos
ressentimentos da Primeira Guerra, nas relações pessoais do Duce e na
forma como um bando de squadri se tornou a primeira força política de
Itália.
Scurati
vai atrás de Mussolini, frisa o seu talento jornalístico, analisa a
ambição e as conjuras sangrentas em que o futuro Duce se envolve e
relata encontros secretos e conspiratórios como um policial; no entanto,
é na sensibilidade para perceber os vários ambientes do pós-guerra que o
livro mais ganha. Entre o conflito diplomático sobre a divisão das
terras do Império Austro-Húngaro e os milhares de combatentes
desocupados, Itália saiu derrotada de uma guerra que ganhou. É no caldo
entre o sentimento de traição e uma espécie de paixão pela vida heroica,
cultivada por d’Annunzio ou pelos Futuristas, que está a visão de
Mussolini e o que dela saiu. É a esse homem que é dedicado esta enorme
trilogia que percorrerá todo o tempo do fascismo, dos seus verdes
entusiasmos à sua queda aparatosa.
O
que entra neste primeiro volume, Mussolini e as suas primeiras
batalhas, entre o duro rompimento com os socialistas e a Marcha sobre
Roma, pretextou estas perguntas a Antonio Scurati, o autor de Mussolini –
O filho do século.
Comecemos pelo título. Porquê “O filho do século”, quando mais depressa poderíamos chamar a Mussolini e ao fascismo os pais do século, aqueles que criaram o século XX?
Chamei-lhe
“o filho do século” precisamente para enfatizar o facto de ele encarnar
uma época. Quis dizer, isto é, rejeitar a ideia – difundida,
especialmente entre os liberais que não se opuseram ao fascismo e depois
há muito cultivada por antifascistas no pós-guerra – de que Mussolini
era uma espécie de alienígena, um outsider, um invasor fora da história e
da civilização italiana.
O
livro identifica dois fatores essenciais para se perceber o nascimento
do fascismo. A ameaça comunista de um lado e a traição de Versalhes do
outro, com o problema do território de Fiúme, por exemplo. Podemos
considerar a origem do fascismo essencialmente negativa, isto é, como um
fenómeno de reação?
Sim,
não há dúvida de que o fascismo foi acima de tudo um fenómeno reativo.
Mas se nos limitarmos a isso, não assumimos o aspeto mais moderno e
atual. Mussolini, que veio do socialismo cujo grande objetivo era a
esperança de um futuro melhor, entendeu que, na era da política de
massas, havia uma paixão política ainda mais poderosa do que a
esperança. E que essa paixão era o medo. Por isso, decidiu apostar toda a
sua sorte no medo e transformou os humores melancólicos e reativos –
medo, ressentimento, rancor, traição, desilusão, degradação – em forças
propulsivas, ativas e violentas.
Percebe-se
que durante muito tempo Mussolini ainda insistiu no ideário socialista.
O que é que explica, então, a atração da burguesia e dos setores mais
conservadores pelo fascismo, quando o seu programa era explicitamente
revolucionário?
A
ideia propagandeada pelo fascimo era uma ideia autointitulada
revolucionária; mas, enquanto a pequena burguesia acredita e espera uma
revolução de direita (o que nunca acontecerá) a média e a grande
burguesia compreendem quase imediatamente o caráter sem escrúpulos,
pragmático, essencialmente tático, do fascismo, e começa a flanqueá-lo
na crença de que não mudará profundamente a estrutura socioeconómica.
Fiúme
é um ponto essencial para perceber a ascensão do fascismo. O problema
de Fiúme representava mesmo a “vitória mutilada”. Ainda assim, Mussolini
hesita no seu apoio a D’Annunzio. Porquê?
Sobretudo
por uma questão de rivalidade pessoal. Enquanto D’Annunzio continuar a
ser o chefe em quem toda a área nacionalista e combatente vê o homem da
providência, Mussolini continua relegado para um papel secundário. Ele
sabe-o e a sua ambição não pode tolerá-lo. Por isso, está pronto para
sacrificar D’Annunzio sem grandes complexos.
Vemos
que o fascismo não tem, ao longo dos tempos, propriamente um programa. É
um aspeto que distingue a direita da esquerda, o apelo das ideias
concretas por oposição às ideias gerais?
Mussolini
teorizou a “supremacia tática do vazio”. Desprezava abertamente os
programas políticos (chamou-lhes “papel desperdiçado”), teorias, ideias,
fidelidade a qualquer ideal vinculativo ou compromisso. O seu
pragmatismo não é apenas uma expressão de falta de escrúpulos, é também
uma nova conceção de política, segundo a qual o líder do novo século não
irá guiar as massas à sua frente para ideais e objetivos elevados e
distantes que as massas não conseguem ver, mas sim segui-las,
afastando-se da multidão para cheirar os seus humores, encher-se deles e
soprar sobre eles como um fole. A partir desta intuição, Mussolini
representa o arquétipo de todos os líderes populistas do século, e chega
até aos da nossa época.
Depois
da primeira Guerra Mussolini tem bastante influência, mas os seus fasci
não são muito numerosos. O que é que explica o crescimento do
movimento, sobretudo quando se baseava tanto na raiva do pós-guerra?
A
violência. Com o medo, a violência é o motor desta história. É
necessário compreender que a violência na vida civil, criada por
profissionais treinados em campos de batalha durante a guerra, não era
apenas um instrumento mensurável em termos de eficácia prática;
tornou-se objeto de desejo político por parte de grandes setores da
população, especialmente dos pequenos burgueses. Até os bons burgueses
não-violentos começaram a desejar que viesse dela uma possibilidade de
simplificação brutal da complexidade da vida moderna, uma solução
radical para os muitos problemas que a democracia deixou por resolver.
Giolitti
tem um papel muito importante no crescimento do fascismo e representa a
primeira grande habilidade diplomática de Mussolini, já que Giolitti
não tinha o apoio de d’Annunzio. Quais são as tendências existentes nos
primeiros anos do movimento?
Há
o fascismo urbano (Milão) e o fascismo rural (Emília Romagna), o
fascismo herdeiro da tradição socialista e o fascismo determinado a
mover-se para a direita; todas as correntes dentro do fascismo, no
entanto, estão unidas por uma rejeição e desprezo pela democracia
parlamentar, da velha classe política liberal. Mussolini é o primeiro a
usar a palavra “anti-partido” para definir o próprio movimento e o termo
“anti-política” para definir a sua atividade política
A
marcha sobre Roma é apresentada como um acontecimento complexo, que só é
possível graças à militância, mas também à ameaça de guerra. Como é o
processo que culmina na marcha?
É
um acontecimento duplamente complexo. Com uma mão, Mussolini ameaça com
a ação militar das esquadras fascistas, com a outra lida debaixo da
mesa com os políticos e apresenta-se como o único homem capaz de impedir
que a Itália caia na guerra civil.
E Matteotti é realmente o derradeiro obstáculo de Mussolini?
Sim,
é um obstáculo. A sua oposição parlamentar teimosa e inflexível
representa a capacidade residual das forças democráticas se oporem à
ilegalidade fascista. Depois, claro, há os comunistas. Também são
irredutíveis, mas também são inimigos da democracia.
O
livro diz que mesmo os inimigos de Mussolini consideram a sua vitória
incontestável. O que é que faz da sua vitória uma vitória tão
retumbante?
Mussolini
sempre apostou no pior, no facto de que tudo correria mal e que todos
os atores em campo dariam o pior de si mesmos. E ganhou a aposta.
Naquela altura havia apenas uma sensação de fraqueza, uma necessidade
irreprimível de fechar os olhos e de se afundar numa espécie de
hibernação.
O
livro não chega à Segunda Guerra. Ainda assim, seria possível falarmos
das relações entre Hitler e Mussolini? Considera o nazismo um desvio ou
uma continuação do fascismo de Mussolini?
Chegaremos lá, queira Deus, no terceiro volume da trilogia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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