Numa época de doentio culto da igualdade, é oportuno recordar a paixão
aristocrática de Churchill pela liberdade. Artigo do professor João
Carlos Espada, via Observador:
Na passada quinta-feira, tive o prazer e privilégio de apresentar na
Academia das Ciências de Lisboa a mais recente biografia de Winston
Churchill, por Andrew Roberts, recentemente publicada entre nós pela
LeYa. (Por mera coincidência, o evento teve lugar a 28 de Novembro, dois
dias antes do 145º aniversário do nascimento de Churchill, a 30 de
Novembro de 1874.)
Os meus prezados Confrades insistiram na pergunta pertinente sobre o
que havia de novo em mais esta biografia de Churchill (uma vez que
existem mais de mil já publicadas). Respondi enumerando as inúmeras
novas fontes a que Andrew Roberts teve acesso, com particular destaque
para os diários do Rei George VI, que reuniu semanalmente com Churchill
durante a II Guerra.
Mas, além das novas fontes, parece-me legítimo registar a ênfase dada
por Andrew Roberts aos elementos distintivos da origem aristocrática de
Churchill.
Andrew Roberts argumenta persuasivamente que a origem e formação
aristocráticas de Churchill lhe forneceram um forte sentimento de
independência e de auto-confiança. Essa dimensão aristocrática, diz
Andrew Roberts, “pode hoje ser vista com desconforto em associação com a
sua imagem de salvador da democracia, mas, se não fosse a invencível
auto-confiança da sua casta de origem, Churchill poderia muito
provavelmente ter preferido adaptar a sua mensagem às circunstâncias
políticas dos anos 1930, em vez de as tratar com desdém, como de facto
fez.”
Churchill, acrescenta Andrew Roberts, “nunca sofreu de deferência das
classes médias nem de ansiedade social, simplesmente porque ele não era
de classe média, e o que pensavam as respeitáveis classes médias não
era importante para a criança nascida no Palácio de Blenheim”.
Tenho de confessar que esta passagem imediatamente me recordou a
minha primeira visita a Blenheim, em 1990. O palácio onde Churchill
nasceu tinha sido mandado construir pela Rainha Ana para oferecer ao
antepassado de Churchill, o Duque de Marlborough, como recompensa pelas
suas proezas militares em 1705. Ainda hoje é considerado como uma das
mais imponentes propriedades privadas em Inglaterra.
Quando cheguei lá pela primeira vez (por sinal, democraticamente, de
autocarro), lembro-me perfeitamente de ter ficado surpreendido com a
imponência do Palácio e dos amplos bosques e lagos adjacentes. E o meu
primeiro pensamento foi que alguém nascido em Blenheim não teria muita
propensão para obedecer a ordens de comando — especialmente se estas
fossem ditadas por “that man” (como Churchill se referia ao desprezível
cabo Hitler), ou pelo camarada Stalin.
Este aristocrático sentimento de rebeldia contra poderes arbitrários
de plantão está de facto presente em muitos discursos de Churchill. Um
dos mais expressivos terá sido o seu discurso em Paris, em 1936, contra o
nazismo e o comunismo:
“Como poderemos nós, criados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil? […] Pois eu afirmo que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para não termos de nos submeter a tal opressão!”
Por outras palavras, concordo com Andrew Roberts quando ele sugere
que a origem e formação aristocráticas de Churchill lhe terão facultado
um sentimento espontâneo de rebeldia contra ordens arbitrárias de
comando — mas não necessariamente contra as opiniões e sentimentos das
pessoas comuns. Como Roberts enfatiza correctamente, Churchill gostava
de recordar o mandamento de Edmund Burke, “Trust the people!”. E, ao
descrever a filosofia política de seu pai, o conservador-liberal
Randolph Churchill, Winston escreveu:
“Ele não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do País, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou que as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se as maiores defensoras daquelas antigas instituições através das quais as suas liberdades e o seu progresso têm sido alcançados.”
De acordo com Roberts, a origem e formação aristocráticas de
Churchill deram-lhe também, ou talvez sobretudo, um sentido de dever
para com o povo e a nação. Esta força de vontade e a capacidade de
resistência de Churchill iriam ficar sobretudo patentes na década de
1930 — “the wilderness years”, como ficaram conhecidos.
Isolado no seio do seu próprio partido Conservador – ao qual
regressara em 1924, vinte anos depois de o ter trocado pelos Liberais,
em 1904 – Churchill recusou ao longo de toda a década de 1930 subscrever
as teses dominantes favoráveis ao apaziguamento com a Alemanha, em
acelerado processo de rearmamento. Essa persistente oposição ao consenso
dominante da época – o que hoje chamaríamos o pensamento politicamente
correcto da altura – custou-lhe um tremendo isolamento político e
pessoal. Mas Churchill não cedeu.
Durante dez anos, repetiu os alertas contra o rearmamento nazi,
condenou a paralisia da Sociedade das Nações, denunciou a maré
anti-democrática que, à esquerda e à direita, crescia na Europa. A
partir da sua casa de campo em Chartwell, onde escrevia e reunia um
pequeno círculo de teimosos dissidentes, Churchill construiu
pacientemente um autêntico “governo sombra”. Recolhia informações sobre a
evolução da Europa, acompanhava o crescimento das forças militares
nazis, estudava a evolução das tecnologias militares. Esses dez anos de
resistência solitária tinham-no preparado como a nenhum outro para
liderar a resistência britânica, quando tudo parecia perdido.
E foi um programa de resistência que anunciou nas palavras memoráveis
do seu primeiro discurso como Primeiro-Ministro na Câmara dos Comuns, a
13 de Maio de 1940, quando ainda estava a formar o seu Governo:
“Nada tenho a oferecer senão sangue, esforço, lágrimas e suor. Temos perante nós uma ameaça da mais grave natureza. Temos perante nós muitos, muitos longos meses de combate e sofrimento. Perguntam-me, qual é a nossa política? Eu direi que é a de fazer a guerra, por mar, terra e ar, com todo o nosso poder e com toda a força que Deus nos deu; fazer a guerra contra uma monstruosa tirania, nunca ultrapassada no lamentável catálogo do crime humano. Esta é a nossa política… Perguntam-me, qual é o nosso objectivo? Posso responder numa palavra: é a vitória. Vitória a todo o custo, vitória apesar de todo o terror, vitória por mais longo e árduo que o caminho possa ser; porque sem vitória, não há sobrevivência.”BLOG ORLANDO TAMBOSI
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