A vitória de A a Z do
peronismo é a situação habitual; o diferente é que a líder, Cristina
Kirchner, esteja como vice e isso não é bom para Fernández. Ai de ti,
Argentina. Vilma Gryzinski:
Em qualquer país normal, uma vitória como a da Frente Todos seria saudada com comemorações dos vencedores, euforia dos eleitos e tristeza dos derrotados.
Como a Argentina é tudo, menos um país normal, tudo isso aconteceu, mas sobrepujado por questões alucinantes.
A mais imediata: até onde o dólar vai bater?
A de médio e longo prazo: até quando Cristina Kirchner vai resistir disciplinadamente no cargo de vice-presidente, cujo pressuposto é a discrição, antes de jogar na cara de Alberto Fernández que só foi eleito por causa dela?
A explosão do dólar, com a consequente implosão da economia, abre outras dúvidas. Mauricio Macri aguenta até a transmissão do poder, como nos países normais, o que o tornaria uma exceção entre os presidentes não peronistas?
Pode ter que
antecipar o fIm do próprio mandato, como aconteceu em 1989 com o sóbrio e
respeitado Raúl Alfonsín, reduzido a um alfajor esmagado pelo
descontrole econômico.
Ou fugir de
helicóptero da Casa Rosada como Fernando De la Rúa, em 2001, com apenas
dois anos de mandato, quando saques e confrontos já tinham deixado 30
mortos e não demorariam a chegar à Casa Rosada.
Macri quer, evidendentemente, deixar um exemplo de civilidade e estabilidade na alternância de nopoder para o país.
O único problema são
os fatos. Quando assumiu, em 2015, numa vitória que parecia impossível
contra a muralha peronista, o dólar esta a 13 pesos. A cotação bateu em
65, 80 no paralelo, na véspera da eleição.
Todo mundo sabia que hoje vivia mais do mesmo: tentativas desesperadas de controlar o desmoronamento.
O teto para a compra
da moeda, por cidadãos comuns, foi estabelecido em 200 dólares. Na
prática, significa que não dá para recorrer ao único instrumento de
preservação do derretimento das economias de quem consegue poupar alguma
coisa.
Nada de novo, infelizmente, para os argentinos.
A novidade é a
composição do poder, com uma vice-presidente poderosa e um presidente
que tenta fazer de conta que que manda é ele e ponto final.
O pessoal do entorno tanto de Cristina Kirchner quanto de Alberto Fernández tenta passar a segunda imagem, claro.
“Vão ter uma surpresa
com Cristina. Está todo mundo fazendo todo tipo de especulações”, disse
ao salte Infobae”, Oscar Parrilli. Ele foi diretor do serviço de
inteligência durante o governo dela, com mais de um choque profissional
(“Me deixa muito fula que você seja tão idiota. Tchau”, dizia um
telefonema vazado, esse karma dos poderosos.)
“Foi ela que ofereceu
a candidatura a Alberto e foi a primeira a perceber o que estava
acontecendo, e sabe perfeitamente qual é o seu papel.”
Geralmente, tudo o
que um sujeito como Parrilli declara é exatamente o oposto da vida real.
Mas o simples esforço de desmentir um futuro confronto indica a
preocupação evidente.
Assessores do
presidente eleito também dizem que Cristina teve “zero influência” na
formação do gabinete, o que não significa que não terá “gente sua”.
Mais importante: além
de se falar “dezenas” de vezes por telefone todo dia com Cristina,
Fernández mantém um bom relacionamento com o principal operador dela, o
filho, Máximo Kirchner, líder da corrente La Cámpora.
Esta é justamente a
corrente à mais esquerda do peronismo atual. Alberto Fernández tenta
passar uma imagem mais centrista e equilibrada, principalmente em termos
econômicos.
LÍDER ESPIRITUAL
A Argentina já teve duas mulheres na vice-presidência e uma quase.
A menos conhecida é a
que vai deixar o governo com Macri, Gabriela Michetti. Ex-deputada e
senadora do mesmo partido que ele, o PRO, paraplégica desde 1994 por
causa de um acidente de carro, enrolou-se no roubo de várias sacolas com
dinheiro, em peso e dólares, furtados de sua casa por um ex-segurança.
Não eram grandes
quantias – nem remotamente comparáveis às centenas de milhões de dólares
que circularam em malas durante o governo de Néstor Kirchner e,
depois, de sua mulher, Cristina, fruto de subornos pagos por empresas
beneficiadas com grandes contatos. O movimento foi criteriosamente
anotado, durante anos, pelo motorista que acompanhava os intermediários.
Como todos os argentinos que conseguem, Gabriela guardava dinheiro em dólares, em espécie, mas pegou mal.
Incomparavelmente
mais dramática foi a atuação de Isabelita Perón, a ex-dançarina de
cabaré que se casou com o general exilado, voltou com ele à Argentina
em 1973, foi colocada como vice na chapa do marido e acabou por
substituí-lo quando morreu.
Antes, completou a
total e absoluta destruição da Argentina, orientada por José López Rega,
ou O Bruxo, um astrólogo e ocultista que havia se tornado a eminência
parda de Juan Perón.
As batalhas entre
peronistas de direita, chefiado pelo Bruxo, e de esquerda, os atentados
contra civis e militares,a anomia de Isabelita, a dissolução
institucional e outros males conhecidos levaram ao golpe militar de
1976.
A outra mulher que foi “quase” vice-presidente tem a mais conhecida, embora excessivamente mistificada, história: Eva Perón.
Ex-atriz de rádio,
com incursões no ramo do entretenimento noturno, como Isabelita, Eva
tornou-se uma revelação política, uma populista por direito próprio,
estrela que usava Dior e Cartier para visitar os descamisados que a
tratavam como mãe dos pobres, uma espécie de princesa Diana louca pelo
poder que tocava leprosos e açulava a luta de classes.
Ao contrário do
marido, mas hábil em “acomodar” interesses diversos, Evita, chamada de
“égua” ou simplesmente de “ela” por oficiais que tentavam seguidamente
derrubar o peronismo, foi impedida, pela oposição dos militares, de se
candidatar a vice-presidente.
O precoce câncer de
ovário a levou do mundo dos vivos para a esfera dos mitos no ano
seguinte, em 1952. Ganhou o título de Líder Espiritual da Nação.
Perón a substituiu, entre as paredes da Casa Rosada, por uma menina de quinze anos que venerava Eva.
“Voltarei e serei
milhões”, é a herança mais conhecida, em termos de frases, que deixou
para os argentinos – o filme ruim e equivocado de Madonna não conta.
Cristina Kirchner está, muito provavelmente, sentindo isso: ela voltou e está sendo saudada por milhões.
Ai de ti, Argentina.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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