É inadmissível que uma minoria use em seu proveito a maior fatia dos recursos públicos, escreve o professor Denis Rosenfield:
A aprovação da
reforma da Previdência é, sem dúvida, um marco na História do País.
Apesar de seus percalços e atrasos, ela vem por bem operar uma grande
transformação não somente do ponto de vista do equilíbrio fiscal, mas
também tornar efetiva a luta contra os privilégios. Há uma dupla
significação aí envolvida: econômica e política.
A significação
econômica tem sido bem ressaltada, graças a um processo que, iniciado no
governo Temer, ganha agora sua conclusão no governo Bolsonaro. Não
seria mais possível o País continuar sangrando com os recursos gastos na
conservação do sistema previdenciário, beneficiando uma minoria
incrustada no Estado, enquanto o desemprego adquire proporções
alarmantes, para além da falta de recursos em áreas fundamentais como
segurança, saúde e educação. Se nada tivesse sido feito, o País estaria
caminhando para a insolvência fiscal, com todas as consequências nocivas
daí resultantes. O não investimento, nacional e estrangeiro, tão
necessário, seria apenas um de seus efeitos.
A significação
política reside em que os estamentos e as corporações do Estado foram
enfrentadas. É bem verdade que o caminho começa apenas a ser percorrido,
há muito a ser feito. Mas não era mais possível conviver com um grau
tão alto de desigualdade entre os setores privado e público. Os
privilégios de uma minoria, com aposentadorias polpudas em idade precoce
– algumas corporações se aposentam com pouco mais de 50 anos, em média
–, foram reduzidos e no que diz respeito à idade mínima, contidos.
Temos aqui uma
espécie de paradoxo: um governo de corte liberal na área econômica,
conduzida por um ultraliberal, o ministro Paulo Guedes, capitaneia uma
reforma contra os privilégios, propugnando a igualdade entre todos os
cidadãos, orientada por um espírito de universalidade entre os
trabalhadores privados e públicos; e uma esquerda que defende os
privilégios das corporações e dos estamentos estatais, contra o
tratamento igualitário para todos os cidadãos, isto é, aferrada aos
benefícios particulares desses setores. “A esquerda” é a favor dos
privilégios, da particularidade e da desigualdade; a “direita” é a favor
da eliminação dos privilégios, da universalidade e igualdade.
Chegou-se a tal
situação paradoxal graças a um trabalho de formação da opinião pública
muito bem conduzido pela esquerda, que soube transmitir a mensagem de
que sua posição era universal, quando esse aspecto era nada mais do que
uma máscara a encobrir a particularidade de suas ideias e o tratamento
desigual entre os cidadãos privados e públicos. Por décadas o País
conviveu com tal condição, como se a direita fosse particularista, e não
igualitária. Presa aos privilégios dos funcionários públicos, a
esquerda conseguiu convencer durante muito tempo a sociedade de que
estaria defendendo os trabalhadores em geral.
O véu só começou a
ser rasgado no governo Temer, quando os privilégios começaram a ser
expostos. A luta foi árdua com as corporações, que se mobilizaram
fortemente contra a reforma da Previdência. Nesse contexto, convém não
esquecer, duas denúncias foram oferecidas pelo então procurador-geral da
República Rodrigo Janot contra o então presidente, visando ao seu
impeachment. Hoje se sabe que não tinham nenhum fundamento essas
denúncias, baseadas num áudio truncado e numa frase inexistente no
contexto em que foi apresentada. Infelizmente, não se pode voltar no
tempo, então o estrago foi feito. A reforma da Previdência parou e os
privilégios foram mantidos. Seus germes, porém, estavam solidamente
implantados.
O presidente Jair
Bolsonaro e sua equipe econômica recuperaram e ampliaram o projeto de
profunda mudança previdenciária, que chega agora a bom termo. A Câmara
dos Deputados, sob a presidência de Rodrigo Maia, e o Senado, sob a
presidência de David Alcolumbre, estiveram à altura do desafio, sabendo
dialogar e fazer o melhor para o País, apesar da desarticulação política
dominante. Souberam distinguir a política miúda dos verdadeiros
interesses nacionais.
Nesse processo a
esquerda ficou se contorcendo, desorientada e imersa em suas
contradições e particularidades. Não aproveitou a ocasião para se
renovar. Alguns deputados e senadores do PSB e do PDT viram a
importância do que estava em jogo e não se submeteram às diretrizes
partidárias. Agora enfrentam o problema das punições, quando deveriam
ser vistos como a vanguarda de uma esquerda que pretende modernizar-se. O
PT, como sempre, graças à sua orientação leninista, votou em bloco na
defesa das desigualdades e a favor dos privilégios, tampouco soube tirar
proveito da oportunidade política de revisar suas posições.
Note-se que a posição
de Marx sempre foi de defesa dos trabalhadores em sua universalidade,
não lhe ocorreu sustentar os interesses de funcionários públicos, que
gozam de benefícios inalcançáveis e impossíveis para os trabalhadores em
geral. O filósofo alemão lutava contra a desigualdade, assim como os
anarquistas e socialistas de diversos matizes da época. Ora, a esquerda
brasileira – e, de modo geral, a esquerda em outros países – abandona
essa mensagem marxista/anarquista/socialista em proveito de uma defesa
intransigente das corporações e dos estamentos estatais.
O combate político,
atualmente, deveria ser, tanto do ponto de vista da “direita” quanto da
“esquerda”, o de desaparelhar o Estado, capturado pelos seus estamentos e
corporações. Não é moral nem politicamente admissível que uma minoria
use em proveito próprio a maior fatia dos recursos públicos, enquanto a
maioria vive em condições sociais das mais penosas, com desemprego,
falta de esperança e baixa renda. A reforma da Previdência deve, nesse
sentido, ser sucedida, em nova etapa, pela reforma administrativa, mais
propriamente, do Estado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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