MEDIÇÃO DE TERRA

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sábado, 27 de junho de 2015

'El País': Por que o transplante de cabeça ainda não é possível?

Um projeto italiano e outro chinês se chocam com a evidência científica atual

O neurocirurgião italiano Sergio Canavero sabe como chamar a atenção. No último dia 12 de junho, foi a estrela da reunião da Associação Americana de Neurologistas e Cirurgiões Ortopédicos que ocorreu em Annapolis (Maryland, EUA) onde apelou aos cirurgiões assistentes que o acompanham em seu ambicioso e controvertido objetivo: realizar o primeiro transplante de cabeça em humanos do mundo. Apresentou seu projeto junto com quem selecionou para entrar na história da medicina, o russo Valery Spiridonov, de 30 anos, cuja atrofia muscular espinal o deixou confinado a uma cadeira de rodas e que se apresentou como voluntário para submeter-se a esta terapia experimental. Junto a Canavero, o pesquisador chinês Xiaoping Ren, mais discreto e algo mais modesto, persegue o mesmo objetivo. No momento, depois de experimentar com ratos (afirma que mais de 1.000), não se atreve a proclamar, como seu colega, que já seja possível desafiar a última fronteira do transplante em humanos. Mas confia que no futuro seja uma realidade, e já prepara estender seus ensaios a macacos de cauda longa neste verão.
Ambos colocaram no centro do debate o transplante de cabeça, uma técnica para a qual Canavero, do grupo de neuromodulação avançada do hospital Molinette de Turim, sustenta que já existem conhecimentos suficientes para poder levá-la à prática no prazo de dois anos. A grande maioria da comunidade científica, no entanto, considera a ideia inviável ou, diretamente, uma loucura. O responsável da Organização Nacional de Transplantes (ONT), Rafael Matesanz, dá voz a este grupo de céticos: “não é mais que o sonho de uma noite de verão; não o vejo”. Entre os diferentes aspectos técnicos que impedem que o procedimento seja viável um destaca do resto: “O principal problema não solucionado é a conexão da medula depois seccionar a cabeça e uni-la ao corpo do doador”, aponta.
Extrair uma cabeça e conectá-la a outro corpo é um processo cirurgicamente muito complexo, mas possível. Os transplantes de tecido composto – em cuja categoria entraria o de cabeça – progrediram de maneira espetacular nas últimas duas décadas com os enxertos de pernas, braços ou cara, com um papel de destaque de cirurgiões espanhóis como Pedro Cavadas e Pere Barret. Podem soldar ossos, unir nervos periféricos, vasos sanguíneos, músculos, a traqueia ou a pele. Também controlar a rejeição provocada ao conectar um corpo estranho graças à medicação imunossupressora, que seria similar a que é administrada nos enxertos de cara – com os consequentes efeitos secundários ligados a esta forte medicação –. No entanto, ainda existe um muro que nenhum pesquisador conseguiu superar: restabelecer a conexão dos tecidos nervosos da medula espinhal depois de um trauma como o que representaria um transplante deste tipo.
O russo Valery Spiridonov, de 30 anos, se apresentou como voluntário para a terapia experimental. (reprodução Youtube)
O russo Valery Spiridonov, de 30 anos, se apresentou como voluntário para a terapia experimental. (reprodução Youtube)
A medula espinhal é uma espécie de enorme cabeamento de fibras encarregadas de transmitir os impulsos nervosos desde o cérebro às extremidades e o resto do corpo (controlam desde os movimentos das extremidades ao controle dos esfíncteres). Há dezenas de milhares de milhões de fios, cada um deles com uma função concreta. Se é seccionado, como implicaria um enxerto desse tipo, surgem dois problemas que, até o momento, a ciência tem sido incapaz de resolver.
Por um lado, a reconexão dos tecidos nervosos depois do trauma. Dezenas de grupos de pesquisa de todo o mundo têm sido incapazes de reativar a conexão medular uma vez cortada por um corte ou um golpe. De fato, se fosse possível, os principais beneficiados seriam as milhares de vítimas de acidentes traumáticos que ficaram paraplégicos.
O segundo problema, como indica Matesanz, consiste em saber, se ao conseguir o enorme desafio de unir a medula, isso servirá para alguma coisa. Toda essa complexa rede de conexões “são como as impressões digitais, diferentes em cada um de nós”, aponta. De forma muito esquemática, há um fio que, por exemplo, transmite a ordem de mover o dedo mindinho esquerdo: a ordem parte de uns neurônios do cérebro, corre pela medula e chega a seu destino. Em cada medula espinhal de cada pessoa (pensemos numa espécie de auto--estrada com milhões de pistas por onde transitam os sinais nervosos até seu destino concreto) cada conexão (a pista correspondente a cada impulso nervoso) não tem por que estar no mesmo lugar. Sendo assim ao não unir a medula e restabelecer a comunicação entre essas milhões de pistas, não encaixaria a origem e o destino dos sinais nervosos entre receptor e doador. Ou, em todo caso, seria necessário casar milhares de milhões de sinais para conectar o circuito da origem com o do destino um a um, o que seria uma tarefa impossível.
Canavaro está convencido de que estes problemas são solucionáveis. Em suas apresentações, ele explica que graças ao polietilenglicol, uma substância que, segundo ele, está revolucionando a medicina, resolverá a união medular. Ele o explica no documento que resume seu projeto, ao qual batizou com um pomposo nome com ressonâncias que remetem à corrida espacial: o Protocolo de Fusão da Medula Espinhal GEMINI. De fato, na conferência que deu recentemente nos Estados Unidos comparou sua empresa com a presença do homem na lua.
O neurocirurgião sustenta que esta espécie de cola plástica serviria, com ajuda de um adequado estímulo elétrico, para unir uma quantidade suficiente de conexões nervosas da medula.
Da meia dúzia de especialistas em transplantes ou lesão medular ouvidos pelo El País – alguns dos quais não quiseram ser citados –, só um levou a sério os trabalhos. Trata-se de Pere Barret, responsável pelos dois transplantes de rosto que foram praticados no hospital Vall d’Hebron de Barcelona, o último há três meses. Até esse ponto que, como publicou o El País, tem a intenção de começar os trabalhos prévios para “explorar o transplante em ratos”. Sua intenção é experimentar as técnicas de fusão da medula espinhal, em especial, comprovar a eficácia do polietilenglicol.
Inclusive se o resultado for que o paciente fique como está e não recupere a mobilidade do corpo do doador depois do transplante, Barret veria sua tentativa justificada. O maior receio que esta técnica apresenta ao cirurgião de Vall d'Hebron é o fato de usar do doador os órgãos que poderiam salvar outras vidas (coração, pulmão, rins, fígado) num procedimento tão arriscado com uma só pessoa. "Aqui é onde vejo o maior problema ético".

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