Uma guerra nuclear poderia originar um inverno nuclear com impacto em todo o planeta — uma nuvem que impediria a passagem da luz do Sol —, fora as mortes e a contaminação prolongada do solo e oceanos. Vera Novais e Marta Leite Ferreira para o Observador:
Vladimir
Putin acusa o ocidente de “fazer chantagem nuclear” com a Rússia. No
discurso transmitido esta quarta-feira de manhã (mas gravado no dia
anterior), o Presidente russo acusa a NATO de ter dirigentes que
“admitem o emprego de armas de destruição massiva contra a Rússia”. Não
se sabe, no entanto, que declarações são estas ou quem as terá
proferido, nem Putin deu mais informação sobre o assunto.
Colocando-se
no papel de vítima da guerra, Vladimir Putin ameaça o Ocidente, ao
mesmo tempo que lança uma mensagem interna que justifique a ofensiva — e
a recém-aprovada mobilização militar parcial. “Se a integridade
territorial e a defesa da Rússia estiverem em perigo, utilizaremos todos
os meios ao nosso alcance para resolver os problemas”. Ao Ocidente
avisa: “Isto não é bluff“. E mesmo sem se ouvir a referência textual ao
emprego de “armas nucleares”, a comunidade internacional não teve
dúvidas da extensão da ameaça do líder russo.
1 Vladimir Putin já tinha feito ameaças nucleares antes?
Como
lembra José Milhazes, especialista em assuntos do Leste Europeu, a
ameaça nuclear “não é novidade”. Horas antes da invasão da Ucrânia, a 24
de fevereiro de 2022, Vladimir Putin já deixava essa ameaça no ar:
“Mesmo depois da dissolução da União Soviética e de perder uma parte
considerável das suas capacidades, a Rússia de hoje continua a ser um
dos Estados nucleares mais poderosos”. Esta quarta-feira, disse-o por
outras palavras: “Quero lembrar que a Rússia também tem meios de ataque e
mais modernos que a NATO”.
Em
fevereiro, Putin já tinha ameaçado aqueles que tentassem invadir o
território russo — coisa que em quase sete meses de conflito não
aconteceu. “Não deve haver dúvidas para ninguém de que qualquer
potencial agressor vai enfrentar derrota e consequências sinistras se
atacar diretamente o nosso país”. Mas mais do que olhar para o que
aconteceu desde fevereiro, as palavras de Putin parecem apontar para o
que pode acontecer se os referendos nas auto-proclamadas regiões
separatistas avançarem no sentido da integração na Federação Russa.
Anos
antes, em março de 2018, o Presidente russo usou outra frase repetida
no discurso desta quarta-feira: “Eles [os países do Ocidente] precisam
de compreender que isto não é bluff“. Na altura, Vladimir Putin, que se
preparava para entrar no quarto mandato à frente do país, disse que a
Rússia estava a desenvolver seis novas armas nucleares “invencíveis” que
abririam portas a “uma nova realidade”.
2 A Rússia terá mesmo capacidade para produzir armas melhores que as da NATO?
A
produção militar russa já viu melhores dias. As sanções impostas pelo
ocidente têm agravado a dificuldade de a Rússia se abastecer com
material de guerra, tendo obrigado o Kremlin a comprar mísseis de
artilharia à Coreia do Norte. Já o aliado chinês diz que não vai vender
armamento a Moscovo e apela ao fim da guerra na Ucrânia. Ciente destas
dificuldades, Vladimir Putin disse, no discurso desta quarta-feira, que o
governo vai apostar em “medidas fundamentais para o complexo
militar-industrial russo, de maneira a aumentar o fabrico de armas”.
Vale
a pena lembrar também que, já em outubro de 1961, a Rússia detonou a
Bomba Tsar, a arma nuclear mais poderosa alguma vez testada, num ensaio
que matou 150 mil pessoas. A bomba de 58 megatoneladas de TNT de energia
(milhares de vezes mais do que a bomba que explodiu em Hiroshima) foi
detonada a quatro mil metros de altitude na ilha Severny, no norte da
Rússia. Havia ainda planos para o fabrico de uma bomba de 100
megatoneladas de TNT.
Efeito estimado da detonação de uma bomba nuclear Tsar, de 50 megatoneladas de TNT, a 4.000 metros sobre a cidade de Lisboa
Se
o teste com a bomba de 50 megatoneladas de TNT tivesse sido feito sobre
a capital portuguesa, a explosão mataria pessoas em toda a área
metropolitana de Lisboa (quase dois milhões de mortos e mais de 600 mil
feridos), mas as queimaduras radioativas seriam registadas da Lourinhã a
Alcácer do Sal e na bacia hidrográfica do Tejo até ao distrito de
Castelo Branco.
3 Que impacto podemos esperar das armas modernas que a Rússia diz ter?
*
O “pai-de-todas-as-bombas”, ou Bomba Termobárica de Aviação de Poder
Aumentado, não é uma bomba nuclear, mas serve-se do oxigénio presente no
ar para provocar uma explosão intensa. A Rússia diz que esta bomba é
capaz de fazer “evaporar tudo o que está vivo” num raio duas vezes maior
que a mãe-de-todas-as-bombas (que o ex-Presidente Trump lançou sobre o
Afeganistão), ainda que a capacidade de destruição seja “apenas” 0,3% da
registada com a bomba nuclear Little Boy em Hiroshima.
*
RS-28 Sarmat é um míssil balístico intercontinental capaz de
transportar até 15 toneladas de ogivas nucleares. Com um alcance de 18
mil quilómetros, consegue dar a volta à Terra pelo equador uma vez e
meia antes de cair.
*
Poseidon (ou Status-6) é um sistema multiusos oceânico que transporta
uma bomba de cobalto. Ao explodir, esta bomba provoca uma onda de
tsunami com 500 metros de altura e é capaz de espalhar uma nuvem de
material radioativo numa área de 510 mil quilómetros quadrados (um pouco
mais que a área de Espanha continental).
* Petrel (ou 9M730 Burevestnik) é um míssil de cruzeiro experimental que transporta armas nucleares e move-se a energia nuclear.
*
Avangard é um planador hipersónico — atinge uma velocidade, pelo menos,
20 vezes superior à do som (que é de mais de 1.200 quilómetros por
hora) — e pode transportar armas nucleares e convencionais. Só a energia
da aeronave em movimento é equivalente a (até) 40 toneladas de TNT
(quatro vez mais do que a energia produzida pelas mais poderosas bombas
antibunker).
*
Kh-47M2 Kinzhal é um míssil de cruzeiro hipersónico que pode
transportar armas nucleares e convencionais. Num exercício militar, a 19
de fevereiro, a Força Aeroespacial da Rússia lançou estes mísseis
aerobalísticos hipersónicos com sucesso.
4 Quais os impactos em termos globais?
Recuando
à II Guerra Mundial, as bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e
Nagasaki, no Japão, terão morto imediatamente entre 100 mil e 200 mil
pessoas, fora aqueles que ficaram com lesões irrecuperáveis e acabaram
por morrer ou os que foram afetados pela radiação e desenvolveram
cancros ou outros tipo de problemas de saúde. As bombas nucleares atuais
serão muito mais potentes.
Por
outro lado, podemos olhar para o impacto do acidente nuclear de
Chernobyl, cuja região continua desabitada e contaminada — e onde se
estima que tenha sido libertada 100 vezes mais radiação do que nas
bombas de Hiroshima e Nagasaki. O acidente de Chernobyl é um bom aviso
em relação à central nuclear de Zaporíjia, no sul da Ucrânia — a maior
da Europa —, cuja zona terá sido bombardeada durante a noite de terça
para quarta-feira pelas forças russas, de acordo com o operador
ucraniano de energia Energoatom. A Rússia retribuiu com a mesma
acusação.
O
impacto de um ataque nuclear reflete-se assim a curto e longo prazo (ao
longo de dezenas ou centenas de anos), não só no número de vidas
perdidas ou fragilizadas e nas infraestruturas destruídas, mas também
com o impacto ambiental: a contaminação do solo e oceanos com a radiação
(reduzindo a segurança alimentar em todo o mundo) e aumentando o risco
de um inverno nuclear, quando a nuvem criada pela explosão (ou
explosões) é de tal forma densa que não se dissipa nem deixa passar o a
luz do Sol — mais ou menos como o fenómeno que levou à extinção dos
dinossauros.
5 Como podem as armas russas escapar às defesas do ocidente?
As
mesmas armas modernas que a Rússia diz ter ou estar a preparar também
vêm preparadas para escapar à interceção por outros sistemas
anti-mísseis. Assim:
*
RS-28 Sarmat está equipado com um sistema que o torna mais difícil de
intercetar e é capaz de destruir outras bombas e mísseis se os detetar a
uma distância de seis quilómetros.
*
Poseidon (ou Status-6) está equipado com um sistema antimísseis,
incluindo mísseis anti-balísticos e armas laser, pode atingir 1.000
metros de profundidade e viajar a uma velocidade de 185 quilómetros por
hora — e sem tripulação.
* Petrel (ou 9M730 Burevestnik) ainda está em desenvolvimento, mas tem o objetivo de ter um alcance praticamente ilimitado.
*
Avangard, como pode atingir uma velocidade de pelo menos 20 vezes a do
som, poderá escapar aos sistemas de defesa antimísseis do inimigo.
*
Peresvet é uma arma laser sobre a qual pouco se sabe, mas que a Rússia
já utiliza desde dezembro de 2019. Esta tecnologia é especialmente útil
para destruir aeronaves não tripuladas, mas consome muita energia e só
funciona a 100% se as condições meteorológicas forem ideais — sem
qualquer nebulosidade, sem chuva ou neve.
6 Quem decide um ataque nuclear por parte da Rússia?
A
resposta é simples: Vladimir Putin. “A atual doutrina militar russa
afirma que ‘a decisão de utilizar armas nucleares será tomada pelo
Presidente da Federação Russa’”, de acordo com o ensaio
de Matt Korda, publicado em janeiro de 2020. Aliás, desde 1997 que a
lei de segurança russa permite a utilização de armas nucleares “em caso
de ameaça à existência da Federação Russa como Estado soberano
independente” — a ameaça que Putin agora alega para justificar a ameaça.
“Nos
termos do Artigo 87.1 da Constituição Russa, o Presidente é o
Comandante Supremo das Forças Armadas, e a Lei sobre a Defesa declara
que o Comandante Supremo das Forças Armadas é a autoridade suprema em
todos os assuntos relacionados com o nuclear”, explicou investigador do Programa SIPRI de Desarmamento Nuclear, Controlo de Armas e Não-Proliferação e responsável do Projeto de Informação Nuclear da Federação de Cientistas Americanos.
7 Podem o ocidente e a NATO evitar uma guerra nuclear?
Citando
Bernard Brodie (1910-1978), um estratega nuclear norte-americano, o
professor de relações internacionais da Universidade do Minho Paulo
Batista Ramos recordou que, “para não ocorrer uma guerra nuclear, nem
sequer pode ocorrer uma guerra”, no programa História do Dia, da rádio
Observador, a 18 de março de 2022.
Já
a NATO obedece a uma política de “no first use”, o que quer dizer que
não partirá daí o ataque nuclear como Vladimir Putin tenta fazer crer.
Até porque uma decisão deste tipo tem de seguir uma longa cadeia e não é
uma decisão de um homem só — é isso que opõe a Aliança Atlântica, com
30 Estados-membros, à Rússia onde Putin tem um poder absoluto. Mais, a
Rússia deixou a política de “no first use” em 1993.
Este
exercício de pensar o que aconteceria em caso de guerra nuclear já foi
feito antes, nomeadamente depois da II Guerra Mundial, e não foi fácil,
como explicou Paulo Batista Ramos: as potenciais consequências eram de
tal maneira catastróficas que muitos dos estrategas envolvidos nesta
reflexão não aguentaram os ataques de pânico e tiveram de deixar esse
trabalho.
8 Estas ameaças devem ser levadas a sério?
Volodymyr
Zelensky disse, numa entrevista ao Bild, que não acredita que Vladimir
Putin vai utilizar armas nucleares na guerra na Ucrânia — ao mesmo tempo
que apelava ao ocidente para travar o Presidente russo. “Há riscos”,
admitiu. “Mas não acredito que ele vá usar essas armas, não acredito que
o mundo permita que ele use essas armas.”
Já
o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, disse que a retórica de
Putin sobre as armas nucleares é “perigosa e imprudente” — mas duvida
que a Rússia ganhe esta guerra. As ameaças nucleares e a mobilização
parcial podem levar à escalada do conflito e levar à perda de mais
vidas, referiu.
“Imprudente”
também foi a expressão usada pelo Presidente norte-americano, Joe
Biden, para se referi à ameaça de Putin. “Ninguém ameaçou a Rússia”,
disse Biden, contrariando o discruso de Vladimir Putin.
A China apelou ao cessar-fogo
e até o Papa Francisco reagiu ao discurso de Putin dizendo que “é uma
loucura”. “Esta guerra trágica traz-nos ao ponto de algumas pessoas
pensarem em usar armas nucleares, isso é loucura.”
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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