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Corre mal, culpa-se o capitalismo, nem que ao mesmo tempo, como fez o senhor Robles e o próprio PCP, tudo se faça para aproveitar aquela mais-valiazita de ocasião (que nem só de pão vive o Homem Novo). Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
“Os ideais são perigosos, já que as realidades nunca são tão belas”
Não
há como negar: Portugal enfrenta uma crise profunda no mercado
habitacional que está a deixar muitos cidadãos em apuros, sobretudo nas
maiores metrópoles do país. A dificuldade em encontrar um lar adequado a
um preço acessível tem múltiplas raízes, não se deve a um único fator.
Mas há uma razão fundamental pela qual não há casas, sendo a causa maior
desta crise: na última década a construção de novas habitações e o
investimento em infraestruturas que crie novas centralidades é escassa. A
falta de construção vê o problema agravado com a saída do mercado da
habitação de inúmeras casas transformadas em alojamentos turísticos e a
chegada a Portugal de um fluxo elevado de imigrantes e residentes
habituais de vários estratos socioeconómicos. Mas não são estes fatores a
raiz do problema, pois o turismo e o influxo de imigrantes são
necessários para pôr o país a funcionar, não é algo que se possa
sacrificar sem consequências graves. Num cenário já de si tenso,
movimentos radicais tomam as ruas apontando o dedo ao capitalismo,
ignorando a ironia palpável de que são os partidos de esquerda no
governo desde 2015 (e há muitos mais anos à frente do Município de
Lisboa) que, de uma perspetiva política, moldaram o panorama atual.
Sim,
o capitalismo tem as costas largas, e no fim de semana passado
assistimos novamente a um desfilar de protestos contra a crise da
habitação, numa tentativa de a extrema-esquerda sinalizar virtudes e
afastar as responsabilidades que tem no atual momento do mercado. A
“luta” nas ruas teve depois eco nos media e nas redes sociais, onde
assistimos a uma penosa e tortuosa apresentação de argumentos que
explicam, pela forma como rejeitam a racionalidade económica e até
factual, porque Portugal se encontra bloqueado em tantas áreas onde não
faz sentido que existissem problemas. Ver Ricardo Robles a juntar-se aos
manifestantes – sem ser presenteado com um banho de crude e penas –, ou
deputados da maioria socialista a prestar homenagem nas redes a quem
destrói montras só é possível porque, em boa verdade, a manifestação não
visou resolver coisa nenhuma na habitação, mais não sendo do que uma
exibição estética de uma certa coterie que vive da afirmação de inúmeras
alteridades artificiais levadas ao extremo e que com os protestos não
procura resolver coisa nenhuma.
No
cerne desta crise habitacional encontra-se um paradoxo intrigante. A
esquerda tradicionalmente crítica do “mercado” protesta contra a
tempestade que ajudou a fermentar. Nos mercados abertos com baixa
burocracia não falta pão. Nem leite. Não faltam computadores,
televisões, roupa para todos os gostos e bolsas. Ou medicamentos
complexos e maquinaria pesada. Carros e até aviões. Por uma razão
esotérica qualquer temos deixado que o Estado assuma mais relevo do que
deveria na questão da habitação, porque é preciso “regular”, “fomentar a
justiça social” e o “acesso de todos à habitação”. Resultado? Faltam
casas, sobretudo para quem mais precisa. Mas para estas mentes
iluminadas, a desculpa está sempre à mão: corre mal, culpa-se o
capitalismo, nem que ao mesmo tempo, como fez o senhor Robles e o
próprio PCP, tudo se faça para aproveitar aquela mais-valiazita de
ocasião (que nem só de pão vive o Homem Novo).
A
vida na realidade é um pouco mais complexa, e esse papão que muitos
apelidam de “mercado livre” ou “à solta” é coisa que não existe.
Portugal, como todos os países socialmente evoluídos, vive sob uma
economia mista onde “mercado” e “Estado” coexistem, muitas vezes de
forma tensa. Os mercados são o resultado dos estímulos que nascem desta
dialética, pelo que quando as coisas correm mal, na maioria das vezes
isso resulta de estarem a emergir os estímulos errados.
O
mercado da habitação, como qualquer mercado, para ter bons preços para
os consumidores necessita ter excesso de oferta. Para que haja excesso
de oferta, os investidores precisam ter dois incentivos: simplicidade no
acesso ao mercado e baixo risco. Se alguém quiser comprar um telemóvel,
não lhe faltam na prateleira equipamentos para todos os gostos,
funcionalidades e preços, disponíveis de imediato. O mesmo ocorre para
uma infinidade de bens, cujos preços têm caído a pique nas últimas
décadas porque o capitalismo tem conseguido essa coisa mágica que é
fomentar disponibilidade da oferta a preços acessíveis – e ainda dar
espaço para que se gerem lucros.
Tal
não acontece na habitação. A oferta habitacional é escassa apenas e só
por desinteresse de privados em investir em mais construção. E porque é
que isso acontece? Porque não existem incentivos suficientes a que se
construa. Desde logo, porque a burocracia e o sistema de licenças é
moroso; depois, porque o sistema fiscal onera significativamente a
construção, é instável e pouco previsível. Acresce que o legislador e os
políticos tudo têm feito para reduzir o número de terrenos
urbanizáveis, enquanto não se investe em infraestruturas (transportes,
hospitais, creches, esgotos) para abrir novas centralidades. Por fim, o
mercado da habitação em várias cidades vive fechado nas mãos de grupos
económicos concubinados com o poder autárquico, para ampliar as
mais-valias. Todos estes condimentos desencorajam muitos investidores e
construtores, diminuindo a oferta, ampliando o prémio de risco e os
custos de contexto que levam à especulação imobiliária – muito mais
fácil e compensatória. Já pensaram que ninguém se queixa da “especulação
telefónica” ou do “tremoço”? Porque será? Porque em boa verdade, não há
grande espaço para a especulação quando a oferta é suficiente para
cobrir a procura.
Entretanto,
os grupos radicais de esquerda, em vez de olharem para a raiz dos
problemas, o que fazem? Protagonizam discursos de ódio: contra os
pequenos aforradores que estão, e bem, a aproveitar o influxo de
turistas para rentabilizar os seus imóveis no alojamento local; contra
os agentes imobiliários – a maioria deles, altamente precários e que
vivem apenas de comissões e objetivos, que facilitam – e bem – a
mediação entre quem procura casa e quem a oferece. Contra as velhinhas
que arrendam quartos a estudantes. Ou contra o capitalismo em geral, por
se desinteressar de resolver aquilo que o Estado tanto faz – por ação e
inação – para que não se resolva.
O
capitalismo e a iniciativa privada não são fórmulas de virtude, mas
apenas a melhor maneira que se encontrou até hoje de tornar mais simples
e eficazes processos económicos tendencialmente complexos. Mais: a
história mostra à saciedade que quando se atacam os alicerces da oferta,
o resultado não é nada auspicioso. A interferência na oferta estrangula
a inovação, desincentiva o investimento e cria barreiras à entrada que
perpetuam a escassez.
Para
que haja mais habitação, só precisamos – imagine-se – de mais casas.
Por isso, tornem o investimento em habitação atrativo a quem investe,
facilitem despejos, responsabilizem inquilinos pelos estragos nas casas,
reduzam os custos de contextos (desde logo, o IVA na construção, mas
também os licenciamentos e os custos da burocracia), facilitem a
urbanização dos terrenos em zonas bem infraestruturadas e acessíveis,
que criem novas centralidades. Sobre tudo isto, com mais detalhe,
escrevi duas crónicas, aqui e aqui, no Observador.
O
que não resolve coisa nenhuma é perseguir ideais de rutura e violência,
algo que sempre atraiu os que procuram escravizar os mais frágeis e
todos aqueles que se deslumbram com o brilho das fórmulas simples e
perfeitas. Sou dos que acha que devemos perseguir a beleza nas suas
formas e linhas, naquilo que nos é tangível e palpável, fugindo, porém,
de tudo aquilo que nos prometa o Céu na Terra. É que os ideais são
perigosos, já que as realidades nunca são tão belas. É na realidade que
todos acabamos por viver, mesmo quando a interrompemos momentaneamente
para navegarmos na fantasia e no sonho.
Em
Portugal, o ódio vendido sem soluções não só é permitido como é
sacralizado, como se algumas causas fossem uma espécie de vacas ungidas
por uma bênção divina. Aos que no discurso público se dedicam a fomentar
ideais a partir da exploração do ódio, nos extremos da vida política, à
direita e à esquerda, importa recordar que os que combatem problemas
criando monstros, acabam deglutidos por eles. Ou como dizia Nietzsche,
quando passamos o dia a olhar para o abismo, acabamos por mergulhar
nele. Não existe essa coisa obtusa chamada “Ódio do Bem”. Todo o
discurso de ódio deve ser combatido, na certeza que não é nos ideais de
fachada ou na demonização do Outro que está a solução para nenhum
problema.
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