A assessora exonerada por atacar atorcida do São Paulo representa bem o espírito do alegado combate ao racismo no Brasil atualmente. Rodolfo Borges para a Crusoé:
O
São Paulo Futebol Clube deu fim a um período de 15 anos sem títulos de
relevância ao conquistar sua primeira Copa do Brasil, contra o Flamengo,
no último fim de semana. Se destacaram no triunfo a torcida tricolor,
que conduziu um time limitado rumo à glória contra o clube mais poderoso
do Brasil; Rodrigo Nestor, o outrora criticado jovem promissor que
marcou o gol do título; o técnico Dorival Júnior, que se vingou da
diretoria flamenguista que o demitiu mesmo após a conquista de dois
torneios; e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.
Anielle
atraiu críticas por dar a entender que pegou carona em voo da FAB para
assistir à final disputada no Morumbi. Flamenguista, gravou vídeo
animada dando conta da viagem, feita sob a justificativa de assinar um
protocolo contra o racismo junto com a Confederação Brasileira de
Futebol (CBF). Foi cobrada publicamente, o que é do jogo, mas a história
estava apenas começando. A ministra enxergou “violência política de
gênero e raça” nos questionamentos sobre sua viagem. Disse também que os
“ataques” não eram contra ela, mas “ao povo brasileiro”.
A
história piorou ainda mais quando Marcelle Decothé, assessora especial
do Ministério da Igualdade Racial, foi pega criticando a “torcida branca
que não canta, descendente de europeu safade (sic)…” do São Paulo em
seu perfil no Instagram. Marcelle acabou exonerada na última
terça-feira, mas o que ela disse não apenas está em consonância com a
primeira reação de Anielle às críticas, como representa o espírito do
alegado combate ao racismo no Brasil atualmente.
A
assessora especial estava apenas reverberando uma crítica que a crônica
esportiva nacional se acostumou a fazer após a construção de arenas
mais modernas no país. No caso da final da Copa do Brasil, os preços dos
ingressos estavam bem elevados, pelo tamanho da partida, tanto no
Maracanã, que abrigou a primeira parte da final, quanto no Morumbi,
apesar de nenhum dos dois estádios ter virado arena. Como resultado, a
população mais pobre ficou de fora. Não foram poucos os cronistas a
dizer que o estádio estava “branco”, como repetiu Marcelle, e a destacar
que esse torcedor da elite econômica não sabe empurrar o time.
Pesquisa
Datafolha indica que apenas 31% dos são-paulinos se identificam como
brancos. Outros 16% se dizem negros. A maioria (46%) entra na categoria
pardos. É mais ou menos a mesma proporção do Brasil, mas a categoria
pardos vai sumindo progressivamente, empurrada para o lado negro ou
branco a depender da conveniência, à medida que o debate racial
brasileiro é dominado pelo discurso americano, reflexo de uma história
mais escancarada e também mais simples. Sem conseguir lidar com as
próprias complexidades, o país mestiço se rendeu às cotas raciais e
tenta se encaixar nos moldes daquilo que parece mais avançado no debate
racial — o “racismo estrutural”, encampado por outro ministro, Silvio
Almeida, dos Direitos Humanos, é o exemplo mais destacado.
Em
A Marca Humana (Companhia das Letras), ou a mancha humana, já que o
original em inglês é The Human Stain, Philip Roth conta a história de
Coleman Silk, um professor universitário que cai em desgraça após ser
injustamente acusado de racismo. Intrigado por dois alunos que não
apareceram nas primeiras seis aulas do curso, Silk questiona: “Alguém
conhece essas pessoas? Eles existem mesmo ou será que são spooks
[espectros, fantasmas]?”. Para seu azar, os dois alunos eram negros, e
spook era um termo usado no passado para se referir de forma pejorativa a
negros — Roth revelou anos após publicar o livro que se baseou na
história real de um amigo.
A
ironia é que, apesar de ter a pele clara, o professor universitário é
negro, geneticamente. Nasceu numa família negra e, aproveitando-se do
fenótipo claro, se alistou na Marinha como branco, aos 19 anos, para
escapar da segregação oficial, vivendo assim pelo resto da vida. É o
tipo de história que não faz sentido no Brasil, onde a dinâmica racial
se desenvolveu e se desenvolve de outras formas. Para o bem ou para o
mal, o país se misturou, e talvez esse fato pudesse ser usado para
combater o racismo de forma mais efetiva do que essa tentativa de
alimentar a cizânia entre europeus e africanos que não existem mais.
“O
perigo do ódio é que, uma vez iniciado, você recebe cem vezes mais do
que esperava. Depois de começar, você não pode parar. Não conheço nada
mais difícil de controlar do que odiar. É mais fácil parar de beber do
que dominar o ódio”, diz Ernestine Silk, irmã de Coleman, ao comentar os
sentimentos da família abandonada pelo negro que escolheu viver como
branco. Se de fato pretende combater o racismo no país, o Ministério da
Igualdade Racial precisa olhar para o Brasil, não para os EUA. E com um
pouco mais de carinho.
Postado há 5 weeks ago por Orlando Tambosi
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