MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Ozônio na ciência dos outros é refresco

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

A diferença entre bem e mal não está no que os meninos do Morro do Alemão chamam de "a coisa em si", mas em quem defende a tal coisa. A crônica de Orlando Tosetto para a revista Crusoé:


Minha alma mater é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas — a célebre FFLCH — da USP. O lema da universidade diz, em latim, scientia vinces, ou seja, “com a ciência vencerás”. Já o símbolo da faculdade, posto sob o brasão da universidade no meu velho diploma, mostra uma ampulheta apoiada sobre um livro aberto, sobre a qual arde uma chama. O significado profundo, e mesmo o raso, dessa simbologia me escapa — deve ter algo a ver com livros, tempo, luz, essas coisas —, mas no papel fica bem bonitinho e nos transmite um certo senso de importância: somos, nós lá formados, os portadores das letras e da lamparina dos tempos.

Mas eis: com a ciência vencerás. Bonito, hein? Dá até, se a gente quiser, para encher o peito na hora de falar: com a ciência vencerás. Um pouco como se a ciência fosse nossa madrinha, um canhão mais moderno nas nossas guerras, um pistolão mais poderoso nas nossas demandas, um craque marcando os nossos gols, uma Mulher Maravilha ou Capitã Marvel comprando as nossas brigas na rua. Com a ciência vencerei: deixa os caras virem para eles verem no que é que dá mexer comigo. Mas não se irrite o amigo: brinco com a ciência porque sou amigo dela — sei que ela é uma coisa muito boa, e correrei em defesa dela sempre que mexerem com ela na rua. Mas uma interrogação, entretanto, existe: com qual ciência exatamente vencerei, vencerás?

O negócio é que o lema da universidade ficaria melhor se rezasse scientiis vinces, “com as ciências vencerás”. Porque, mais do que ciência, existem ciências, e a triste verdade é que nem todas elas podem ser convidadas para a mesma mesa. Por exemplo, é certo que vai dar briga se você acomodar a Física junto com alguma das chamadas Ciências Ocultas: cedo ou tarde, vão entrar de tapa uma na outra. Ou se você botar a Trigonometria e a Numerologia sentadas juntas num simpósio: o clima vai pesar. Ou se você juntar a Química e a Homeopatia no mesmo sofá: o silêncio gélido se fará notar. Também não convide a Estatística e a Quiromancia para o mesmo chá. E nem sonhe em juntar a Economia e as Ciências Sociais no mesmo camarim: vão voar cacos de espelho.

Dá briga, elas não se bicam; e entretanto são, ou diz-se que são, ciências todas, atendendo perfeitamente à definição do dicionário: ramos do conhecimento humano. Uns ramos mais curiosos do que outros, uns ramos mais polêmicos do que outros, pois é, mas tudo ramo. Mas atenção, o negócio é o seguinte: ainda que tudo seja, em tese, ciência, as ciências que cuidam das vacinas e dos antibióticos não são as mesmas que cuidam dos benefícios do pensamento positivo ou dos efeitos dos influxos planetários sobre o nosso destino. E é por aí que a gente entra no assunto em que quero entrar.

Venho de saber que o jamais assaz louvado senhor presidente sancionou aí uma lei, ou baixou uma portaria, dando OK para a aplicação livre da coisa que leva o nome curioso de ozonioterapia. Ou seja: está liberado tratar os males, as mazelas das pessoas tacando ozônio nelas.

Achei curiosa a liberação porque me lembro vagamente de que, nos tempos mais árduos da pandemia, uns novidadeiros vieram defendendo um tratamento para a Covid que envolvia a aplicação do ozônio numa área da anatomia humana mais afeita à emissão do que à recepção de gases. Ora, esse tratamento foi bombardeado não só pelas pessoas que a Covid transformou em celebridades científicas da noite para o dia, mas também por muitos médicos e cientistas bem sérios. Ouso dizer que, no caso da Covid, a ozonioterapia foi considerada inferior até mesmo à cloroquina. Pois faltam, dizem esses sérios, “evidências científicas” de que essa terapia preste para alguma coisa.

Ora, convenhamos: é curioso que o governo que veio nos libertar de uma era de trevas, que trouxe de volta do exílio o amor e a cultura (e as ciências entram justamente aí, na rubrica cultural), libere uma terapia que apanhou tanto quando e porque foi proposta justamente pelos fautores das trevas que nos sufocavam. E o faça, senão sob os aplausos, ao menos sob o silêncio amistoso, fofinho, daqueles que tanto a atacaram antes.

Dá a impressão — enganosa, sem dúvida, mas que dá, dá — de que no Brasil de hoje a diferença entre bom e mau, ou entre bem e mal, não está naquilo que os meninos do Morro do Alemão chamam de “a coisa em si”, mas sim em quem defende a tal coisa. Se Fulano, de quem não gostamos, diz que é bom, então é mau; mas se quem diz que é bom é Beltrano, que amamos, aí passa a ser mais do que bom, passa a ser ótimo.

Da minha parte, acho que, sendo tantas as ciências, deve haver alguma que nos ajude a ajustar à nossa subjetividade uns critérios mais objetivos. Tenho fé, uma fé aliás bastante científica, de que vamos conseguir. Algum dia.
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