Zygmunt Bauman |
Os críticos da meritocracia por vezes parecem imaginar a vida como uma espécie de corrida cujos resultados só seriam justos se todos partissem rigorosamente da mesma linha. Vamos imaginar: todos com a mesma educação, condição econômica e assim por diante. Coluna de Fernando Schüler para a revista Veja:
A
meritocracia virou uma espécie de patinho feio do debate atual. Michael
Sandel diz que ela tem um “lado sombrio”, pois, entre outras coisas,
promoveria a “desigualdade”. Nos esportes, na economia, nos concursos de
beleza, na educação. Eu mesmo me lembro disso, no colégio, em Porto
Alegre. Quem tinha letra boa podia usar caneta, quem não tinha escrevia
com o lápis. A mesma coisa com a leitura. Quem sabia ler direito era
liberado mais cedo para o recreio. Lembro que aquilo me fez ficar horas
lendo em voz alta, no meu quarto, e (ao que me recordo) não gerou nenhum
grande trauma. Anos atrás, fui a uma escola charter, no Harlem, em Nova
York, e deparei com o ranking dos alunos em todas as paredes, matéria a
matéria. Na entrada da escola, um boneco do Obama. Os melhores alunos
iriam para Washington, no fim do ano, em uma visita à Casa Branca.
Perguntei à diretora se aquela meritocracia toda não gerava algum
problema na cabeça dos alunos, e ela me olhou sem muita paciência. Acho
que ela não iria concordar muito com os críticos da meritocracia. O
último que li foi David Brooks, no The New York Times, culpando a
meritocracia pela eleição de (sempre ele) Donald Trump.
A
elite arrogante da Costa Leste, com seus diplomas da Ivy League e
identificada com o Partido Democrata, tanto tripudiou sobre os caipiras e
“sem educação” das regiões interioranas do país que eles passaram a ver
em Trump o seu vingador. A tese é boa, só não ficou claro o que a
meritocracia teria a ver com isso, dado que sua maior defesa é
precisamente feita pelos conservadores. O mais provável é que os
“caipiras” estivessem irritados exatamente com as políticas afirmativas
que se opõem à meritocracia. Que “furam a fila” do sonho americano, como
bem identificou a socióloga Arlie Hochschild em um magnifico estudo
sobre a alma conservadora americana.
Tornou-se
uma espécie de mania retórica insistir que “a meritocracia é uma
farsa”, visto que há pessoas que nascem em famílias ricas, outras em
famílias pobres. Ou que alguns nascem com o talento de Neymar e outros
se enrolam com a bola, como eu. Isso é uma imensa bobagem. Nunca soube
de alguém que defendesse, seriamente, a ideia de que os resultados que
as pessoas obtêm, e as desigualdades, na sociedade resultem do mérito
das pessoas. É evidente que a distribuição aleatória do talento e da
sorte afeta o tempo todo nossos resultados ao longo da vida. Se você
tropeçar e der de cara com um bilhete premiado da loteria, ou por acaso
dividir o dormitório, na faculdade, com Mark Zuckerberg, pode ficar
milionário, sem que qualquer ideia sobre mérito tenha lá muito a ver com
isso.
O
problema é que isso por vezes nos faz esquecer da outra verdade
elementar: que, em boa parte das coisas que fazemos na vida, coisas como
o esforço e o trabalho duro contam, e contam muito para os resultados
que alcançamos. “A vida é como um jogo de canastra”, me dizia o primo
Beto. “As cartas vêm pelo sorteio, mas você é que faz o jogo.” A imagem é
perfeitamente verdadeira, desde que todos, por óbvio, recebam sua mão
de cartas para jogar. Seria um tremendo erro para qualquer sociedade
fazer crer às pessoas que é a sorte ou o azar, ou alguma metafísica
divina, e não seu caráter e suas decisões, que definem a vida de cada
um. Ainda por estes dias, lia uma dessas matérias associando a
meritocracia a todos os males possíveis, para ao final dar o braço a
torcer. Em um quadro, no fim do texto, liam-se “dicas” sobre como os
jovens de menor renda deveriam agir. “Faça o que for preciso para se
qualificar”, dizia o texto, “forme um networking”, e coisas do tipo.
Traduzindo: aposte que “você pode”, como não cansava de repetir Obama,
ele mesmo um exemplo de que o destino não vem pronto em um pacote.
Os
críticos da meritocracia por vezes parecem imaginar a vida como uma
espécie de corrida cujos resultados só seriam justos se todos partissem
rigorosamente da mesma linha. Vamos imaginar: todos com a mesma
educação, condição econômica e assim por diante. Como isso é impossível,
o jogo estará sempre comprometido. O ponto é que a imagem da “corrida
da vida” é falsa. As pessoas são diferentes, têm expectativas distintas
sobre a vida e associam seu senso de realização a critérios que não
atendem a um padrão comum. A vida é feita de infinitas corridas, e em
boa parte delas não estamos competindo contra ninguém. Se eu decidi ser
um professor, posso fixar alguns objetivos, como dar boas aulas e fazer
pesquisas, e isso nada tem a ver com o sucesso ou o insucesso de meus
noventa e tantos vizinhos de edifício, em São Paulo, ou de meus mais de
trezentos colegas na faculdade.
Gosto
de ver essas coisas a partir de uma antiga intuição de Thomas Hobbes,
em seu Leviatã. “A natureza fez os homens tão iguais”, disse ele, “que,
embora por vezes se encontre um homem mais forte, ou de espírito mais
vivo”, não seria uma diferença “considerável” para que alguém pudesse
“reclamar qualquer vantagem” sobre os demais. Significa o seguinte: a
natureza nos fez fundamentalmente iguais. Não porque pretendemos as
mesmas coisas, ou dispomos dos mesmos talentos, mas porque, em nossas
infinitas diferenças, somos todos capazes. Capazes de criar valor,
produzir excelência, provavelmente como Messi ou a nossa Dayane dos
Santos, em algum métier humano.
Uma
forma mais poética de dizer isso ouvi de Zygmunt Bauman, em uma
conversa em sua velha casa de Leeds, na Inglaterra. “Muitos consideram a
personalidade de Sócrates como a mais perfeita”, disse o velho
filósofo, já no final de nosso diálogo. “Isso significa que deveríamos
imitá-lo?”, provocou. “Não! Porque a sabedoria de Sócrates estava
precisamente em ter inventado sua própria maneira de viver.” E era esse o
seu segredo: “Que para cada ser humano há um mundo perfeito. Feito
especialmente para ela ou para ele”. Bauman se refere ao encaixe. À
descoberta que cada um tem a fazer sobre aquilo que preenche a vida e
faz cada um produzir a melhor versão de si mesmo.
Não
me esqueço da história contada por Ken Robinson sobre a menina que era
um problema, em sua escola, na Inglaterra dos anos 50. Em vez de prestar
atenção na aula e fazer o que a professora mandava, ela era agitada e
por vezes dançava entre as cadeiras. Quando foi decidido que ela iria
para uma escola para “alunos-problema”, sua mãe pediu uma última
avaliação. Caiu nas mãos de um psicólogo que fez uma coisa um tanto
estranha. Recebeu a menina em uma sala grande e quase vazia, colocou uma
música na sua vitrola e pediu para ela esperar um pouco. Fora da sala,
chamou a mãe, e os dois puderam ver, a distância, a menina levantando e
dançando alegre ao som daquela música. Foi nesse momento que o psicólogo
olhou para a mãe, angustiada com a cena, e disse, calmamente: “Sua
filha não é um problema. É uma bailarina”. É isso. Gillian Lynne se
tornaria uma estrela do Royal Ballet. A verdade é que cada um de nós é
uma Gillian Lynne. E só nos tornamos um “problema” se não descobrirmos o
exato significado disso. Não se trata de uma corrida contra ninguém,
mas uma jornada para dentro de si mesmo, que diz respeito única e
exclusivamente à nossa realização como seres humanos. O sentido maior
que deveria ter a nossa educação e, por que não, a comunidade humana em
que vivemos.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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