MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

A novilíngua como língua nativa

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

A diferença de opiniões é, para os intelectuais modernos do Ocidente, o que a heresia era para a Inquisição em seus dias de glória. Theodore Dalrymple para a revista Oeste:


Quando Nancy Pelosi, então presidente da Câmara norte-americana, estendeu a mão para o ex-presidente Donald Trump, antes da apresentação do discurso anual do Estado da União, ele se recusou a apertá-la e virou as costas de forma grosseira. Ao fim do discurso, Pelosi rasgou a transcrição ostensivamente, como se o texto não valesse o papel em que foi impresso e devesse ser expurgado por completo dos registros históricos.

Esses dois gestos, infantis e impulsivos, podem ser considerados insignificantes, mas na verdade foram emblemáticos da maneira como a oposição política, não apenas nos Estados Unidos, foi transformada em algo muito mais profundo — um ódio e uma animosidade reais. Faz alguns anos que não vou aos EUA, mas amigos de lá me contam que pessoas de visões antagônicas quase não suportam estar na mesma sala juntas, e pais, se quiserem manter relações com os filhos, se sentem obrigados a evitar certos assuntos, sobre os quais existe discordância. Isso significa que eles ficam o tempo todo pisando em ovos, que nunca podem relaxar de fato com sua prole quando chegam a uma certa idade.

Por isso, leio com consternação que o presidente Bolsonaro não esteve presente na posse de seu sucessor e, portanto, não entregou a faixa presidencial. É um mau auspício para uma democracia em funcionamento, que, afinal, depende de uma certa delicadeza em aceitar a derrota, seja qual for o turbilhão interno que isso possa causar no perdedor. Não aceitar uma derrota dessa maneira é colocar, em ordem de importância, a si mesmo e à sua vida privada acima do país, e é uma manifestação de egoísmo em grande escala. Naturalmente, a gentileza precisa ser uma via de mão dupla, é difícil ser gentil com aqueles que são abertamente desdenhosos conosco, ainda que talvez isso seja possível para os santos. A santidade, entretanto, não é uma qualidade que se costuma encontrar na vida política, e, dessa forma, não se pode contar com ela para a promoção de um comportamento decente. Apenas a cultura da tolerância pode fazer isso.

Lamentavelmente, quanto mais a tolerância é alardeada como uma grande virtude, ou até mesmo como a maior das virtudes, menos ela é praticada na vida cotidiana. Se as pessoas fossem tolerantes, não haveria necessidade de exaltá-la. Isso me faz lembrar a situação do rei da Espanha, que precisava mandar repetidas vezes seus decretos para seus vice-reis na América do Sul, porque eles tinham tão pouco efeito prático. Aos recebê-los, os vice-reis diziam: “Obedezco, pero no cumplo”. Somos assim com os preceitos morais sobre a tolerância: somos tolerantes, mas odiamos pessoas que não concordam conosco.

A tolerância requer um devido exercício de falta de sinceridade. Toleramos apenas o que nos causa desagrado, porque não há necessidade de tolerar coisas de que gostamos. Podemos pensar que alguém que tem uma opinião diferente da nossa é um canalha ou um idiota, mas não podemos ter uma discussão civilizada com essa pessoa se revelarmos nossa opinião sincera. Precisamos manter a hipocrisia e fingir que achamos que essa pessoa está apenas equivocada e, sendo alguém de inteligência e boa vontade, vai mudar de ideia graças à genialidade da nossa argumentação, e às evidências que apresentamos em favor da nossa própria opinião. Claro, a pessoa precisa fazer o mesmo.


Infelizmente, existe um culto de sinceridade no mundo moderno de acordo com o qual nada que esteja na mente de alguém deve ser contido. Porque, se for, vai infectar e acabar causando uma espécie de septicemia psicológica, que vai entrar em erupção como algo terrível, uma Cracatoa de fúria. Nessa escala de valores, a hipocrisia é o pior dos pecados, e não algo muitas vezes virtuoso e necessário, o óleo que mantém a vida tranquila e relativamente sem fricção.

Ao mesmo tempo, a opinião — política e social — se tornou a medida do altruísmo, talvez até a única medida do altruísmo, especialmente para a classe intelectual. São muitos os que me disseram que tinham medo de expressar suas opiniões na companhia de intelectuais, por medo de serem vistos como pessoas más, ainda que suas opiniões fossem comedidas e moderadas. A diferença de opiniões é, para os intelectuais modernos do Ocidente, o que a heresia era para a Inquisição em seus dias de glória. A excomunhão, até agora apenas de facto, e não de jure, se tornou o instrumento favorito de silenciar as dúvidas e gerar conformidade. Em nenhum lugar isso é mais verdadeiro do que nas universidades, onde, prima facie, seria possível esperar que a discussão aberta brotasse como em nenhuma outra parte. Ao contrário, o medo está à espreita nos bosques da academia. E é nos bares e nos botequins que se podem ouvir discussões genuinamente livres — além de, claro, muita bobagem, que é o primeiro fruto da liberdade.


Dessa forma, estamos vivendo sob dois imperativos opostos: o primeiro é ser sempre sincero, e o segundo, ser ao mesmo tempo tolerante. Só podemos reconciliar esses dois imperativos se transformamos a necessidade da tolerância em seu oposto, ou seja, afirmando que opiniões diferentes ou opostas à nossa são, em si, manifestações de intolerância, a única coisa que não podemos tolerar. Assim, começando na tolerância chegamos ao totalitarismo, isto é, o totalitarismo em nome da tolerância.

Nessas circunstâncias, é inevitável que a oposição política se torne uma hostilidade de fato, como se não houvesse nada capaz de unir pessoas de opiniões diferentes que fosse mais importante que as diferenças que nos separam, ou capaz de se sobrepor a elas. Um odium theologicum passou a permear a sociedade como um miasma, e a entrega de cargo de um presidente ou líder político para o outro se tornou praticamente uma guerra civil. O que nos separa é muito mais importante do que o que nos une: o que, claro, significa que a imposição da uniformidade deve ocorrer em nome da diversidade. Precisamos adotar a novilíngua, como em 1984, romance de George Orwell em que tudo significa o oposto do que significava antes, mas com algum vestígio da conotação antiga, como na nossa língua nativa.
Postado há por

Nenhum comentário:

Postar um comentário