BLOG ORLANDO TAMBOSI
Por que esperar que o Estado resolva todos os nossos problemas? Fernando Schüler para a revista Veja:
“Super-ricos
pedem para pagar mais imposto”, li em uma matéria. Achei que era
brincadeira, mas não. Era uma carta assinada por mais de 200
endinheirados, que causou frisson nos dias festivos de Davos, na Suíça.
“Vocês, nossos representantes, tributem a nós, os ricos, e agora!”,
diziam nossos “milionários patriotas”, como o grupo se autodenominou, em
meio àquele enorme congestionamento de jatinhos, limusines e pregações
contra a desigualdade e o aquecimento global. O mais interessante foram
as premissas sustentando a ideia. A primeira foi exposta por Owen Jones,
um jornalista pop inglês, dizendo que, “em vez de filantropia, os ricos
deveriam dar seu dinheiro ao governo, que sabe melhor o que fazer com
ele”. Outra era a crença de que dar mais dinheiro ao Estado seria a
melhor maneira de “diminuir a desigualdade”, como constava na carta dos
bilionários.
Quando
lia essas coisas, pensei no Brasil. Fiquei imaginando se vinte
bilionários brasileiros (temos 56, na lista da Forbes) tivessem decidido
doar 1 bi, cada um, para o governo. O pessoal lá em Miami, meio
entediado, entre uma Pol Roger e outra, lendo o artigo de seus colegas
globais, e, num lance de entusiasmo, manda recolher um DARF extra de 1
bi, cada um, para o Tesouro Nacional. Nosso sábio governo agora tem 20
bilhões a mais para reduzir a desigualdade. É basicamente o valor
previsto para as emendas de relator, declaradas inconstitucionais pelo
STF. Quando isso aconteceu, achei que o Congresso e o novo governo iriam
abater o valor das emendas do rombo fiscal aprovado na PEC da
Transição. Ledo engano. O dinheiro continuou lá, indo para a conta do
déficit público. Como resultado, cada deputado terá 32 milhões em
emendas individuais para distribuir. Nossos gabinetes parlamentares
funcionarão como pequenos ministérios, direcionando uma montanha de
recursos públicos para os municípios de suas bases eleitorais. Podem ser
kits de robótica, unidades de saúde, estradas asfaltadas pela metade,
um ginásio de grandes proporções para uma cidade de pequeno porte, ou um
show sertanejo na festa da cidade. Os exemplos não são inventados.
Talvez eles atendam às esperanças de Owen Jones e nossos felizes
bilionários de que o governo “sabe o que está fazendo”, mas desconfio
que seja apenas uma ilusão.
Outro
ponto que me chamou a atenção na carta dos milionários foi a ideia de
que, além de reduzir as desigualdades, com mais dinheiro para os
governos, seria possível melhorar a “qualidade da democracia”. Novamente
me lembrei do Brasil. No finalzinho do ano, nossos parlamentares
decidiram não apenas se autoconceder um generoso aumento, como aumentar
também o vencimento dos ministros do STF, que serve como teto salarial
do funcionalismo. O valor vai a mais de 46 000 reais. A votação foi
“simbólica”, isto é, sem que ninguém saiba quem votou contra ou a favor.
Quanto custará? Há quem fale em 2,5 bilhões de reais. Há quem diga que
tocar nesses assuntos é mesquinharia. “Tem de pagar bem mesmo”, me diz
um colega. Não discordo. Só tem um detalhe: temos o Parlamento
proporcionalmente mais caro do planeta, cada parlamentar custando 528
vezes a renda média do trabalhador brasileiro, como mostrou a pesquisa
feita por Luciano de Castro, do IMPA, e outros pesquisadores. E somos
também o país que mais põe dinheiro em partidos e campanhas eleitorais.
Nas últimas eleições, torramos 5 bilhões de reais no fundão eleitoral.
Candidatos à reeleição, em regra caciques partidários, com ampla
estrutura de campanha, receberam, em média, 1,7 milhão de reais; os
novatos, pouco mais de 200 000 reais, e a grande maioria, muito menos.
Tudo para gerar maior “equidade” na disputa eleitoral, como por vezes
escuto. Os dados são reveladores. Andamos a 1% do PIB acima da média
latino-americana em desonerações fiscais. Coisas que vão da Zona Franca
de Manaus ao subsídio à compra de caminhões, com todas as consequências
sabidas, da tabela do frete à ainda recente “bolsa caminhoneiro”, a um
custo de 5 bilhões de reais. Cada cifra dessas nos conta a história do
“país da meia-entrada”, na expressão de Marcos Lisboa. Tenho dúvidas
sobre se nossos milionários patriotas, lendo essas coisas, perderiam seu
ânimo em pedir mais impostos, ao menos no Brasil. Talvez apostassem no
autoengano.
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Antes
de falar em dar mais dinheiro aos governos, o melhor é perguntar como
os governos estão gastando o dinheiro de que dispõem. Nosso maior
orçamento setorial é o da saúde, mas se você tiver um problema
complicado no joelho vai levar em média quatro anos para uma avaliação
cirúrgica pelo SUS. O segundo é o da educação, e nossos alunos da escola
pública ocupam as últimas posições no PISA, a cada três anos. Então é
preciso cuidado. Antes de fazer graça em Davos, seria interessante saber
se a ação do governo, fora do mundo retórico, está mesmo reduzindo a
desigualdade.
Outra
questão: por que esperar que o Estado resolva todos os nossos
problemas, em vez da tomada de iniciativa pelos cidadãos? Eduardo Lyra
criou o Gerando Falcões desde o zero, e hoje tem uma capacidade ímpar de
transformar comunidades pobres. Ele poderia ter ido reclamar do
governo. Talvez tivesse virado um político. A questão vale especialmente
para nossos bem-intencionados milionários. Em vez de correr atrás do
governo, por que não fazer como Andrew Carnegie, no século XIX: usar o
dinheiro e a inteligência para produzir mudanças. É o que nos diz uma
das lições de Alexis Tocqueville, em sua famosa viagem à América. Ele se
surpreendeu com o que chamou de “autogoverno em pequena escala”. A
incrível capacidade que as pessoas tinham em se associar. “Os
americanos”, ele diz, associam-se para “fundar escolas, igrejas,
difundir livros, construir prisões e hospitais”. Assistiu a milhares de
americanos, preocupados com o alcoolismo, conectando-se para promover a
abstinência às bebidas. E provocou: “Na França, eles teriam ido exigir
que o governo vigiasse as tabernas”. Lá se vão 200 anos, e parecemos não
ter aprendido a lição.
No
Brasil, porém, há sinais positivos. Tempos atrás conheci o Inteli, uma
faculdade de alta tecnologia, em São Paulo, sem fins lucrativos, criada
pela iniciativa de dois líderes empresariais, com a maior parte de
alunos bolsistas. Eles teriam feito melhor indo ao governo exigir mais
impostos? Não creio. Os exemplos estão aí. O Museu do Ipiranga foi
recuperado com mais de 180 milhões de reais oriundos do setor privado, o
mesmo acontecendo com a nova fábrica de vacinas do Butantan. O valor
somado das doações é menor do que o subsídio dado pelo governo estadual
para sustentar pedágios no ano passado. Doações, de um lado;
“racionalidade política”, de outro. Deveríamos aprender. Evitar o
autoengano do Estado e as ilusões da política. E de quebra dar escala às
iniciativas da sociedade civil. De forma que também possamos ser uma
terra de doadores, na qual a “arte da associação”, como sugeria
Tocqueville, em sua viagem, seja vista como uma virtude, e cultivada
desde a formação que todos recebemos.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826
Postado há 7 hours ago por Orlando Tambosi
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