São essas famílias, acossadas pelo desemprego e pela imigração desenfreada, as vítimas preferenciais dos opioides, nome dado a qualquer fármaco com propriedades psicoativas que causem efeitos similares ao ópio. Alexandre Borges para a Gazeta do Povo:
Entre
abril de 2020 e abril de 2021, os EUA romperam a assustadora barreira
de 100 mil mortes por overdose no período. O principal vilão desta
tragédia de proporções bíblicas não é uma substância vendida por cartéis
mexicanos do tráfico, mas um medicamento disponível em qualquer
farmácia americana. É essa história que você vai entender vendo a
premiada série Dopesick, disponível no Brasil via streaming pela Star+.
Você
não vai conseguir entender o mundo atual sem conhecer os infames
opioides e a devastação que estão causando em milhões de lares desde os
anos 90, quando um poderoso lobby da indústria farmacêutica conseguiu
convencer, com métodos mais heterodoxos do que os usados por aqui para
atrasar compras de vacinas, que o medicamento OxyContin, da gigante
Purdue Pharma, que o medicamento era inofensivo. A série é baseada no
livro Dopesick: Dealers, Doctors and the Drug Company that Addicted
America, de Beth Macy.
Se
ainda não viu, vou poupar você de spoilers, mas não da trama. Os fãs de
séries lembrarão que o inesquecível Dr. Gregory House (Hugh Laurie) era
dependente de um medicamento para aliviar as excruciantes dores que
sentia na perna, chamado Vicodin, uma poderosa combinação de paracetamol
e hidrocodona com altíssimo potencial de criação de dependência no
usuário regular. O polêmico OxyContin é considerado duas vezes mais
viciante que o Vicodin, remédio controlado e usado apenas em situações
especiais.
O
fabricante do OxyContin obteve da FDA (U.S. Food and Drug
Administration, órgão americano regulador de alimentos e medicamentos)
nos anos 90 a aprovação da alegação, totalmente falsa, de que menos de
1% dos usuários do remédio se viciaram. Seguiu-se a isso um avassalador
esforço de marketing e vendas e, em pouco tempo, médicos do país inteiro
estavam prescrevendo a droga para casos tão corriqueiros quanto dores
de dente. O resultado é um drama de saúde pública que ainda está longe
de ter sido superado.
“Por
que eu deveria me importar com o uso abusivo de remédios por viciados
americanos?”, você me pergunta, com toda razão. E é nesse ponto que a
política aparece, não apenas pela exposição das relações incestuosas
entre a indústria farmacêutica e os órgãos reguladores e fiscalizadores,
o que não é novidade, mas como um medicamento vendido em qualquer
esquina, prescrito de boa fé por médicos induzidos ao erro, levou ao
agravamento da situação calamitosa de parte das classes médias
ocidentais, já tão vilipendiadas pela desindustrialização das últimas
décadas e pela imigração de mão de obra de baixa qualificação para fazer
uma concorrência desleal pelos poucos empregos industriais e similares
que sobraram.
Milhões
de trabalhadores ocidentais viram seus empregos serem exportados para
países em desenvolvimento, em grande parte na Ásia, num processo que
ficou conhecido como offshoring. São essas famílias, acossadas pelo
desemprego e pela imigração desenfreada, as vítimas preferenciais dos
opioides, nome dado a qualquer fármaco com propriedades psicoativas que
causem efeitos similares ao ópio.
A
soma de desemprego em massa causado pelo offshoring, a importação de
trabalhadores braçais do terceiro mundo e a facilidade de acesso a
drogas psicoativas com um poder tão viciante que, na prática, se
tornaram uma espécie de heroína legal, prescrita por médicos, foi uma
combinação mortal. Um número incontável de cidadãos ocidentais que
sofrem com o vício ainda são ridicularizados na cultura pop como
racistas, xucros, fundamentalistas, xenófobos ou, nas palavras de
Hillary Clinton, “deploráveis”. Não é surpresa que virassem presa fácil
para populistas.
Em
Dopesick, tudo funciona. Direção precisa e sensível, fotografia
envolvente, atuações monumentais de Michael Keaton, Kaitlyn Dever,
Rosario Dawson, entre outros. Se quiser, veja apenas pela qualidade
artística e criativa da obra, mas prepare o braço para uma dose cavalar
de verdades inconvenientes sobre o surgimento do tal “extremismo”, um
problema social gravíssimo que merecia um tratamento mais sério dos
vendedores de narrativas fáceis e erradas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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