No Qatar, as mulheres gozam da liberdade compatível com o islã, que permite a existência delas. O tráfico de crianças é corriqueiro. Não sei a que título alguns protestam contra o “mundial” do Qatar. A crônica semanal de Alberto Gonçalves para o Observador:
2006
foi o último ano em que, até ver, o campeonato do mundo de futebol se
realizou num país sob regime aborrecido, a Alemanha. Desde então, tem
sido um pagode.
Em
2010, o “mundial” viu-se entregue à festiva África do Sul, que
distraidamente pagou aos senhores da FIFA uma quantia apreciável e que, a
fim de acomodar o evento, passou os meses anteriores ao mesmo a
escorraçar e prender mendigos e outros elementos susceptíveis de
perturbar os visitantes. Em 2014, a honra coube ao soalheiro Brasil da
dona Dilma e do sr. Lula, que possivelmente pagou aos senhores da FIFA
uma quantia apreciável e patrocinou viçosos subornos e “derrapagens” na
construção dos estádios, a exploração de inúmeros trabalhadores, a morte
de uma pequeníssima percentagem desses trabalhadores, o desalojamento
de largos milhares de desgraçados das suas casas e, no geral, uma
operação de propaganda que revelou à Terra o esplendor da corrupção
local e um “time” capaz de encaixar sete golos. Em 2018, coube a vez da
impoluta Rússia (sim, essa Rússia) do sr. Putin (sim, esse sr. Putin),
que inevitavelmente pagou aos senhores da FIFA uma quantia apreciável,
desatou a explorar nacionais e a escravizar norte-coreanos para erguer
estádios, e orientou o espancamento e o sumiço dos indigentes que
poluíam as cidades onde os estádios estavam.
Perante
tal currículo, seria um desconsolo que o anfitrião do torneio de 2022
baixasse as expectativas. Se possível, a FIFA subiu-as: escolheu o
Qatar. É verdade que o Qatar ajudou à escolha, pois evidentemente pagou
aos senhores da FIFA uma quantia apreciável, incrementou a escravatura
de imigrantes para produzir infra-estruturas modernaças e, no processo,
matou-os em quantidades discutíveis (entre 3 – três – segundo as
autoridades indígenas e 6500 – seis mil e quinhentos – ou 10000 – dez
mil – segundo a imprensa estrangeira).
O
engenho do Qatar não se esgota aqui. O território é uma teocracia nas
mãos de uma família eleita pelos céus e guiada pela Sharia, onde a
apostasia é punida com cadeia, chicotadas e, nos casos graves,
fuzilamento; onde a blasfémia é punida com cadeia, chicotadas e, nos
casos graves, fuzilamento; onde a homossexualidade é crime punido com
cadeia, chicotadas e, nos casos graves, fuzilamento; onde o adultério…
etc. No Qatar, as mulheres gozam da liberdade compatível com o islão,
que do alto da sua bondade permite a existência delas e, com leviandade
discutível, o respectivo voto.
Mas
nem tudo é bom no Qatar. Também há coisas óptimas. Os naturais do ermo,
perdão, emirado têm dinheiro. Consta que os shoppings são impecáveis.
Os arranha-céus são homenagens solenes à foleirice. Os carros de luxo
abundam nas ruas. O tráfico de crianças é corriqueiro. E isto sem
referir os elevados padrões da península na política internacional, com o
histórico ódio a Israel, a devoção pela “causa” palestiniana, a
instigação do “jihadismo” no Médio Oriente e o suporte diplomático e
financeiro à Irmandade Muçulmana e ao Hamas. Não sei a que título alguns
protestam contra o “mundial” do Qatar.
Certas
federações da bola, pelo menos as dos EUA, da Austrália e da Dinamarca,
mostraram-se chateadas com a questão dos direitos humanos. Um jogador
português, Bruno Fernandes, confessou-se chateado com a questão dos
direitos humanos e, sobretudo, com a tenebrosa interrupção da época e o
sinistro horário dos jogos. Por sorte, nenhum dos queixosos compreende
bem o conceito de discórdia, que no caso consistiria em não participar
naquilo que nos repugna. Assim, sem excepção, todas as selecções
apuradas e todos os futebolistas convocados estarão presentes no Qatar,
recebidos em histeria por claques falsas.
Ainda
bem. Os “mundiais” acontecem apenas a cada quatro anos e, para lá dos
merecidos retornos para a FIFA e os organizadores, são uma oportunidade
episódica para que os profissionais da bola exibam habilidade técnica,
tatuagens sublimes e penteados na vanguarda do universo capilar. Além
disso, a exposição global permite a milionários remediados a assinatura
de contratos que os tornem milionários sem remédio. E lembre-se os
biliões de adeptos, que contam com a celebração do “beautiful game” para
despachar cervejas e inspirar os filhos nos nobres valores do desporto.
Como
antes os ligeiros deslizes de Rússia, Brasil e África do Sul (e da
Argentina, em 1978, e da Itália, em 1934), os pecadilhos do Qatar não
devem ser susceptíveis de comprometer os desafios no relvado. O
totalitarismo político, o esclavagismo, a homofobia, a subalternização
das senhoras, o racismo, o terrorismo, o anti-semitismo e maçadas
similares são só pechisbeques retóricos com que, em determinados
contextos sociais, as almas sensíveis enchem a boca – para a esvaziarem
mal o árbitro sopre o apito inicial. Por cá, o prof. Marcelo já deu o
mote: esqueçamos as irrelevâncias, que o importante é concentrarmo-nos
no essencial, ou seja, em gritar por valentes que vão legitimar uma
simpática e sangrenta ditadura, e em achar normal que o PR, o PM, o
presidente da AR e resmas de sumidades viajem a nossas expensas para
observar e apoiar e comentar ao vivo a “equipa de todos nós”.
A
mim, por exemplo, ninguém poderá acusar de ignorar o “mundial” e a
“selecção” por causa das minúsculas idiossincrasias do Qatar. Ignoro o
“mundial” e a “selecção” porque tenho mais que fazer.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário