Há pelo menos duas décadas, e num crescendo, as universidades têm despejado na sociedade mais e mais magistrados convictos de que sabem os caminhos para o “bem viver” em sociedade e de que têm legitimidade para impor suas escolhas aos outros. Artigo do professor Jean Marcel Carvalho França para a Gazeta do Povo:
Um
fantasma ronda o Ocidente: o fantasma do juiz esclarecido. O espectro,
com mais ou menos sucesso, tem assombrado muitas das democracias
ocidentais. Dos EUA à Itália, do Canadá ao Brasil, a sua presença é tão
intensa que já há quem fale, com alguma ironia, mas muita preocupação,
numa gradual passagem dos sistemas representativos para um tenebroso
reinado (ou proto-reinado) de juízes progressistas. Por aqui, o seu
avanço insidioso tem sido tratado por muitos como uma simples querela
entre o presidente da República – uma suposta ameaça à democracia – e
membros do Supremo Tribunal Federal – autodeclarados defensores da dita
democracia.
O
impasse, no entanto, está longe de ser tão simples, pois o que está em
jogo não é somente o mandato ou a reeleição deste ou daquele governante,
mas a própria sobrevivência das democracias ocidentais.Para se ter uma
ideia do real alcance e magnitude do embrolho, e sobretudo dos enormes
estragos e tensões que tem causado pelo mundo afora, vale a pena dar uma
lida no recém-lançado La démocratie au péril des prétoires. De l’État
de droit au gouvernement des juges (A democracia sob ameaçados
tribunais. Do estado de direito ao governo dos juízes, em tradução
livre), do ex-membro do Conselho Constitucional da França – o STF de lá –
Jean-Éric Schoettl.
O
que salta aos olhos no livro de Schoettl é, de saída, a semelhança do
quadro francês com o brasileiro: tanto lá como aqui, o ativismo dos
tribunais tem sistematicamente impedido que os governantes eleitos
governem segundo o programa que os eleitores aprovaram nas urnas; tanto
lá como aqui, medidas saídas da cabeça de magistrados que se julgam
verdadeiros guias de consciência têm afetado gravemente as liberdades
individuais e perturbado o cotidiano dos cidadãos; enfim, tanto lá como
aqui, tamanha ingerência na condução da sociedade tem lançado em
descrédito o sistema representativo e, consequentemente, a própria
democracia tal qual a conhecemos no Ocidente.
Essa
sensação de que se está diante de um quadro muito similar ao brasileiro
persiste quando Schoettl dá a conhecer as razões pelas quais o seu
país, gradativamente, mergulhou no que denominamos por aqui “ditadura da
toga”. Uma delas, sobremodo importante, diz respeito à formação dos
magistrados, a maior parte deles proveniente de universidades públicas,
nas quais o progressismo e o ativismo político naturalizaram-se.
Há
pelo menos duas décadas, e num crescendo, as universidades têm
despejado na sociedade mais e mais magistrados convictos de que sabem os
caminhos para o “bem viver” em sociedade e de que têm legitimidade para
impor suas escolhas aos outros. Dito de uma maneira mais grosseira:
magistrados vaidosos, histriônicos e, sobretudo, crentes de que têm uma
missão nos tribunais: educar o cidadão ordinário, uma personagem
grosseira, racista, homofóbica, antiecológica, em suma, a encarnação do
atraso e do obscurantismo.
Tamanha
convicção e prepotência – amparadas e infladas por uma mídia igualmente
dogmática, por grupos identitários, por poderosos lobbies
internacionais e por um número não insignificante de intelectuais – têm
promovido, segundo Schoettl, uma alteração perigosa no mundo jurídico: o
direito operado nos tribunais virou-se contra a lei. As leis
promulgadas, expressão durável da vontade geral, não são mais garantia
de segurança para o cidadão; cotidianamente, as suas determinações são
relativizadas pela jurisprudência das Cortes Supremas (nacionais e
internacionais) que, na sua sanha de corrigir o mundo, educar a gente
comum e supostamente proteger as muitas vítimas do sistema, não hesitam
nem mesmo em decidir contra a lei promulgada, ignorando-a ou
reescrevendo-a – é gente que quer derivar “a democracia do Direito, e
não o Direito da democracia”, adverte Schoettl.
Ora,
se as leis, aquelas forjadas em câmaras que congregam os representantes
eleitos pelo voto popular, estão se tornando, por razões diversas, um
emaranhado de regras instáveis, sujeitas à interpretação de magistrados
que se julgam imbuídos da missão de transformar a sociedade, que
importância têm, de fato, o legislador e o legislado?
A
base da democracia representativa é a eleição de representantes,
daqueles que irão legislar, isto é, criar leis e regras sustentadas em
valores e princípios compartilhados pelos representados, e daqueles que
vão estar à frente do governo, que vão, espera-se, propor e executar
medidas que a maioria dos eleitores entende ser melhor para as suas
vidas.
Ao
esvaziar o Poder Legislativo, relativizando as leis promulgadas, e
engessar o executivo, criando mil obstáculos – muitos deles fúteis e
absurdos – ao exercício da governança, o Judiciário parido nas últimas
décadas, inflado e sem limites, acabou por minar a crença do cidadão
comum no voto popular e meteu as sociedades ocidentais num beco sem
saída.
É,
pois, compreensível mas alarmante que, um pouco por todo lado no
Ocidente, cresça a olhos vistos o número dos que não fazem a menor
questão de votar, dos que estão persuadidos de que pouca ou nenhuma
serventia tem escolher representantes destituídos do poder de governar
e, o que é pior, condenados a consumir os seus mandatos cumprindo
determinações de magistrados eleitos por ninguém.
Jean
Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre
outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro
Oitocentista”, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes
no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na
Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“
e “Ilustres Ordinários do Brasil”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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