BLOG ORLANDO TAMBOSI
A vida é feita de infinitas histórias. Todas elas nos dizem para acreditar nas pessoas e no melhor que cada um pode ser. Fernando Schüler para a revista Veja:
Dias
atrás li uma entrevista de Michael Sandel, filósofo de Harvard,
sugerindo que Messi e Cristiano Ronaldo deveriam estar em “dívida”, em
vez de celebrar seu sucesso como resultado de algum tipo de mérito
pessoal. Sandel escreveu um best-seller, A Tirania do Mérito, atacando o
que chama de “retórica da ascensão”. Critica Bill Gates por associar a
ideia de “ganhar mais” com “estudar mais” e coisas do tipo. Sugere
substituir a competição por vagas nas universidades, a partir do
conhecimento de cada um, por sorteios. Seria uma forma de mostrar a
força do acaso, e não de coisas como o preparo e o estudo, na vida das
pessoas. Sempre admirei Sandel. Até trabalhamos juntos, em algum
momento, mas suspeito que exista alguma coisa mal colocada em seu
argumento.
“A
ideia meritocrática fez o mundo moderno”, diz Adrian Wooldridge, editor
da The Economist e autor do belíssimo livro The Aristocracy of Talent. A
obra mostra como a ideia das “carreiras abertas ao talento” desempenhou
um papel-chave na ruptura com as velhas estruturas da Europa
aristocrática, em que o sucesso dependia essencialmente do nascimento e
do pertencimento social. A noção de que qualquer um poderia ocupar a
posição que quisesse, “sem outra distinção que não suas virtudes e
talentos”, estava lá, inscrita na Declaração dos Direitos Humanos, da
Revolução Francesa. Essa foi uma ideia central na grande tradição
iluminista. Ela esteve na base da gradativa universalização do acesso à
educação, no mundo moderno, e serviu de pavimento para a enorme
transformação econômica, na era industrial, assim como para a lenta
afirmação de nossas democracias.
O
radicalismo antimeritocrático atual se organiza sobre uma espécie de
falácia do espantalho, que consiste em “denunciar a ideia fraudulenta de
que vivemos em sociedades meritocráticas”. O truque é fazer acreditar
que de fato alguém defenda a ideia esdrúxula de que, em uma economia de
mercado, o sucesso é definido pelo mérito pessoal. Isso é uma bobagem.
Não há uma régua para definir ou medir o que significa mérito
individual. O mercado remunera o valor, não o mérito. As pessoas compram
celulares da Apple não por reconhecer o talento de Steve Jobs, mas pela
boa relação custo-benefício de seus produtos. No mais, é perfeitamente
plausível que alguém faça sucesso, ou fique milionário, simplesmente por
um lance de sorte. O sujeito pode ganhar na loteria, por exemplo, ou
herdar 1 milhão de dólares de uma tia distante. Simplesmente não há como
separar o que é resultado do esforço ou do acaso.
Isso
não significa que o esforço, a disciplina e a capacidade de renúncia
não sejam decisivos para o sucesso. Reside aí o paradoxo do mérito.
Tyler Cowen e Daniel Gross observam que nos EUA, de 1980 a 2000, o grau
de escolaridade explicava 75% da desigualdade de salários; nas últimas
duas décadas, esse porcentual caiu para 38%. As diferenças de ganhos
surgem majoritariamente dentro dos grupos de mesmo padrão educacional. O
que vai fazendo a diferença são precisamente aspectos ligados ao mérito
e ao talento. A capacidade de alguém apresentar uma performance
superior, pela capacidade de inovar ou de trabalhar duro, mesmo
competindo com pessoas com a mesma base educacional. Há algo associado
ao fator humano, à “capacidade de perseverar em objetivos de longo
prazo”, como define a psicóloga Angela Duckworth, fazendo a diferença na
vida das pessoas. E é simplesmente um erro fazer de conta que essas
coisas não existem, quem sabe para não destoar da multidão barulhenta.
O
desafio é cultivar uma visão inclusiva do mérito. Em vez de renunciar
ao princípio das “carreiras abertas ao talento”, crucial na formação
moderna, deveríamos andar para a frente. Assegurar que cada um tenha
direito a uma base de oportunidades iguais. A igualdade pura e simples
de oportunidades não passa de uma miragem. Seria preciso separar os
filhos das famílias, impor a todos a mesma educação e, por fim,
equalizar a sorte e o azar. O segredo é focar no que Harry Frankfurt
chamou de “suficiente”. Isso pode significar muitas coisas, mas todos
concordariam com o pacote básico, que inclui uma sociedade aberta, feita
de direitos iguais e uma boa educação. Educação que realmente faça a
diferença, colocando alunos de menor renda nas mesmas escolas, ou ao
menos em escolas similares, onde estudam os alunos de maior renda.
Curiosamente, o que nossa elite atrasada não quer nem ouvir falar.
Assegurado
o básico, são as escolhas de cada um que devem fazer a diferença. Na
prática, a famosa frase de Obama: “Se você tentar, você pode conseguir”.
Meu amigo Sandel achou a frase um insulto. Acha que ela é ofensiva para
os que não conseguiram chegar lá. Fico com Obama. Se alguém falhou (e
quem nunca?), deve ter a chance de aprender e voltar ao jogo. Essa ideia
contém um claro sentido ético: desejamos não apenas ter sucesso, mas
saber que somos autores do caminho pelo qual trilhamos. E talvez seja
por aí que se mova uma boa sociedade. Aquela que não trate as pessoas
como “vítimas das circunstâncias”, como diz Wooldridge.
Para
uma visão inclusiva do mérito, sugiro prestar atenção à hipótese de
Howard Gardner, psicólogo de Harvard, de que a inteligência humana é
múltipla. Ele identificou nove grandes campos, que vão da inteligência
lógico-matemática à inteligência interpessoal. Neymar pode não se
interessar muito por filosofia, mas sua capacidade corporal-cinestésica é
constrangedoramente melhor que a minha. A tese de Gardner recupera a
velha ideia iluminista de que todos somos capazes. E que é preciso
acreditar um pouco mais nas pessoas. Apostar que, recebendo a chance
devida, as pessoas saberão voar muito mais alto do que nossos
preconceitos permitem imaginar.
É
o que diz Ken Robinson, o grande educador inglês. Ele conta a história
de uma “menina-problema” na Inglaterra elitista dos anos 1930. Uma
daquelas alunas dispersivas, que não param no lugar e terminam por
irritar os mais pacientes professores. A guria ia ser mandada para uma
escola de “alunos-problema”, mas sua mãe pediu uma última chance. Foi a
um psicólogo, que a deixou por algum tempo sozinha, em uma sala, com uma
música ao fundo. Minutos depois, a menina dançava pela sala. O
psicólogo chamou a mãe dela e, quando ambos observavam aquela cena,
vaticinou: sua filha não é um problema, é uma bailarina.
Essa
história sempre mexeu comigo. Qualquer um de nós poderia ser aquela
menina. O que ela recebeu não foi muito. Foi uma chance básica de fazer a
diferença no mundo. Seu nome era Gillian Lynne. Ela se tornou uma
estrela do Royal Ballet, mas essa é apenas a sua história. A vida é
feita de infinitas histórias. Todas elas nos dizem para acreditar nas
pessoas e no melhor que cada um pode ser. Isso está lá, no coração do
projeto moderno, e diz respeito a valores dos quais não deveríamos abrir
mão.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791
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