Dizem que «as sanções não podem ser demasiado pesadas». Não podem? Somos colaboracionistas? Cada cêntimo para a Rússia em troca de petróleo, gás, carvão cheira a medo. Só o cheiro a medo autoriza massacres. Eugénia de Vasconcellos para o Observador:
A
Rússia de Putin mente. Fá-lo com um objectivo claro, a manutenção e
expansão do seu regime autocrático e cleptocrático e fá-lo por uma única
razão: porque pode. Nós, sublinho, nós deixamos. E nós somos as
democracias ocidentais, os herdeiros daqueles que as implementaram e as
defenderam.
Em
2014, a Rússia invadiu a Ucrânia e ocupou a Crimeia. Negou-o. A Rússia,
então, afirmou repetidamente que eram grupos rebeldes, separatistas, e
não tropas russas. Publicamente, na Rússia, esta astúcia foi celebrada
por muitos pois estava ao serviço de um bem maior: a preservação da
sagrada nação russa e o mito da sua milenar duração contra tudo e todos.
A popularidade de Putin disparou na altura, tal como agora, porque a
Rússia de Putin tem um desígnio para preencher o vazio pós queda do muro
de Berlim. Os vazios podem ser lugares terríveis quando não nos
confrontamos com eles e com os lutos que nos propõem. O vazio da igreja e
dinástico foi substituído pelo comunismo, pelo culto dos seus líderes e
a construção de um inimigo congregador. Posteriormente, quando este
regime caiu, nada havia para ocupar o seu lugar. Putin tem,
progressivamente, oferecido isso, o que quer que isso seja, à Rússia:
restabeleceu a igreja, o culto do líder, o nacionalismo, a missão. E a
missão é reintegrar no corpo russo o que dele foi retirado
sucessivamente, não interessa se pelos mongóis, se pela Grande Armada de
Napoleão, se por Hitler ou pelos Estados Unidos ou pela União Europeia
ou a Nato. Pela Tchetchénia ou pela Geórgia. Pelo povo ucraniano. Ainda
que para isso seja necessário reescrever a história em ensaios onde os
factos são rasurados e em discursos de hora e meia. Depois da
reintegração a expansão, como claramente afirmou Medvedev, «construir
uma Eurásia de Lisboa a Vladivostok». Se dúvidas houvesse. E claro, esta
meta é exequível. A Hungria e a Sérvia demonstraram-no este domingo com
as reeleições de Viktor Orban e Aleksandar Vucic, pró-putinistas
patrocinados.
A verdade tem de ser repetida pelo menos tantas vezes quanto a mentira porque a luta é desigual: a democracia está em recessão.
Mas é a democracia que permite pessoas como Alexandre Guerreiro a
disseminar propaganda e desinformação russa em horário nobre, como
permite a agenda woke e a extrema esquerda. Mesmo quando esta fragmenta e
faz da esquerda, do centro e do centro direita, reféns. A democracia
permite a esta extrema esquerda asséptica e maniqueísta apelidar todos
quantos não subscrevem os itens agendados de «intolerantes, censores,
irrelevantes, banais, fúteis e sem referências éticas». A democracia,
pasme-se, permite que se vitimizem, triste figura, ao longo de um
manifesto Pela Paz e Contra a Criminalização do Pensamento. Até permite a publicação no Expresso, tal é a criminalização.
A
Rússia de Putin mente. E fá-lo com rigor propagandístico norteado pelo
sempre actual Goebbels, «uma mentira dita uma vez continua a ser uma
mentira, mas uma mentira mil vezes repetida torna-se uma verdade».
Lavrov tem sido o discípulo incansável desta fé. A Rússia mente. Nega
que invadiu a Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022. Nega ataques a civis.
Nega a utilização de crianças como escudo. Nega a violação de mulheres e
meninas. Nega as execuções sumárias. Nega os massacres hediondos de
Bucha como negou os de Mariupol e Irpin como negará quaisquer outros com
a vileza acrescida de culpar os ucranianos por esses crimes quando não
lhes atribui encenações. Há cidades à fome e à sede e ao frio. Valas
comuns. Cadáveres espalhados pelas ruas. Mutilados. Corpos profanados
por minas. E o que se passa nos campos de triagem para onde os
ucranianos estão a ser levados aos milhares? Famílias ucranianas
resistentes nos territórios ocupados estão a ser separadas, despojadas
de documentação, internadas aos milhares em campos de triagem, para
serem relocalizadas na Rússia, como se não tivéssemos esse pesadelo
acordado ainda com as memórias de 1939-45. As informações são da Cruz
Vermelha. São relatadas por vítimas e jornalistas, as imagens são
confirmadas por satélites. Nada disto é novo. Nada é feito pela primeira
vez. A ONU, afirma que investigará para responsabilizar efectivamente
os perpetradores. Tem de fazê-lo rigorosamente. O Tribunal Penal
Internacional também. Sabemos todos: Putin é um criminoso de guerra. Há
anos que o é. Em 1999 já o era. A pretexto do movimento separatista
tchetcheno, ordenou uma «operação anti-terrorista» – parece familiar? A
operação durou dez anos e foram massacrados milhares de civis, cidades
arrasadas, uma carnificina. Ninguém o parou então nem depois na Geórgia
onde usou mesma fórmula em 2008. Sanções e um ano depois, amigos como
dantes. Síria. Arménia. Cazaquistão.
Nós, para continuarmos a viver em democracia, temos de a defender e isso obriga-nos a tomar uma posição.
O
medo é a arma de Putin. É funcional. A economia é o nosso calcanhar de
Aquiles. Ambos nos imobilizaram antes, e na situação ucraniana em 2014.
Permitiram que fizéssemos de uma questão maior, uma questão regional.
Mas esta guerra é nossa. É a nossa forma de vida que está em causa. As
nossas liberdades. Dizem «as sanções não podem ser demasiado pesadas».
Não podem? Somos colaboracionistas? Cada cêntimo entregue à Rússia em
troca de petróleo, gás e carvão, cheira a medo. Só o cheiro a medo
autoriza o massacre de civis, sabê-los desamparados e saber que as
consequências desse acto são suportáveis e logo passam. A negação da
entrada da Ucrânia na NATO cheira a medo. Não armar e equipar
adequadamente a Ucrânia cheira a medo. Medinho. Miúfa. E não é o medo
que nos vai defender. O medo vai abrir a estrada de Lisboa a
Vladivostok.
A autora escreve segundo a antiga ortografia
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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