Eu, que sempre fui um veemente defensor de uma ‘reforma política’, hoje tremi nas bases ao me deparar com essa expressão. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
Para
vocês verem como são as coisas: eu, que sempre fui um veemente defensor
de uma reforma política, hoje tremi nas bases ao me deparar com essa
expressão.
Explico-me.
Revirando minha tralha no computador, encontrei relatos sobre três
reformas feitas no Brasil: uma, no início do século; outra, no meio; e
uma mais recente. A primeira começou batizada como “política dos
Estados”, título depois vulgarizado como “política dos governadores”,
mas, se dependesse de mim, seria “ditadura dos governadores”. Seu autor
foi o presidente Campos Salles, natural de Campinas, que governou de
1898 a 1902, e me disponho a conceder-lhe um bom desconto, porque a
situação econômica do Brasil estava realmente sinistra. Devíamos os
tubos à Inglaterra e precisávamos desesperadamente de uma moratória.
Ocorre que os britânicos podem ser fleugmáticos, mas bobos não são.
Queriam gordas garantias.
Na
parte econômica, nós até que demos um jeito, mas na política nossa
tenra República não estava em condições de garantir nada a ninguém.
Meus
leitores poderão ponderar que, sendo Campos Salles o presidente da
República, bastava-lhe fazer umas três viagens, quatro ou cinco apelos
pelo bem da Pátria, uns tapinhas nas costas, e pronto. Fogo é que o moço
de Campinas não gostava muito de conversa. O que ele fez foi o
seguinte. Convocou os governadores e sapecou: “Olha aqui, pessoal, tenho
um acordo a lhes propor. Na Câmara, como sabem, existe um penduricalho
inútil chamado Comissão Verificadora de Poderes. Cabe-lhe garantir que
os parlamentares eleitos nos Estados foram de fato eleitos. Pois então.
Antes de vir a este encontro, dei um jeito de turbiná-la. Agora, todos
os membros dela têm por mim uma fidelidade canina. Para fechar a
moratória com os ingleses, eu preciso de unanimidade. Pois eu lhes
proponho. Façam o que quiserem em seus Estados. Torrem dinheiro,
empreguem parentes e mandem a polícia zelar por opositores estaduais ou
municipais que queiram atazanar vocês. Em troca, não me mandem deputados
rabugentos, desleais à Pátria”.
Claro,
da noite para o dia, os governadores transformaram seus Estados em
ditaduras de partido único. Exceções, só o Rio Grande do Sul, onde
chimangos e maragatos não se bicavam, e em 1926 o Partido Democrático de
São Paulo. Não preciso dizer que o retrocesso foi colossal. Uma reforma
e tanto.
O
espaço não me permite relembrar a década de 1950, mas do essencial
estou certo de que vocês se lembram. Getulismo versus antigetulismo.
Guerra fria, complicando cada vez mais o imbróglio entre comunistas e
anticomunistas. Lembrem-se de que a Constituição então vigente admitia
chapas mistas, presidente de um partido e vice de outro. Ciente de que
jamais venceria a aliança PSD-PTB, a UDN embarcou na manobra mais
oportunista de nossa história: apoiou para a Presidência o ex-governador
de São Paulo, notório Jânio Quadros. Este facilmente bateu o Marechal
Lott, candidato do PSD, mas João Goulart elegeu-se para a vice. Pronto,
nitroglicerina pura.
No
dia 26 de agosto, Jânio começou a executar a trama que obviamente tinha
na cabeça havia vários meses. Enviou ao Senado uma carta renunciando à
Presidência. Jânio imaginou que sua carta seria debatida durante vários
dias e o País, em polvorosa, o levaria de volta nos ombros ao Palácio.
Mas – sempre há um mas – Auro de Moura Andrade, presidente do Senado,
não gastou saliva. “Renúncia é ato unilateral, não cabe discussão.
Arquive-se.” Pronto, Jânio ficou dependurado na brocha.
Mas
– vejam vocês, sempre há outro mas – o vice João Goulart estava em
viagem de Estado à China. Recebeu a notícia em Hong Kong, já sabendo que
uma junta militar assumira o poder e o prenderia assim que pisasse no
Brasil. Mas – vejam vocês, havia um terceiro mas –, no Rio Grande do
Sul, o governador Leonel Brizola, cunhado de Jango, sublevou a Brigada
Militar, exigindo a posse de Goulart. A nuvenzinha escura de guerra
civil que pairava sobre o País só se desfez quando o pessoal bom de
conversa prescreveu uma conciliação parlamentarista.
Minha
terceira reforma é recente e, para minha sorte, cabe em poucas linhas.
Em 1988, nossos sapientíssimos constituintes entenderam que o Brasil
ficaria melhor com duas Justiças. Uma para os ricos e outra, para os
pobres. Decidiram que um indivíduo condenado por um crime só começará a
cumprir a sentença quando todos os recursos estiverem esgotados. É o
chamado “trânsito em julgado”. Como há quatro instâncias, a pena
prescreve ou ele começa a cumpri-la depois que o Supremo Tribunal
Federal decidir. Imaginemos um pobre que pule um muro, roube um frango e
é preso. Sem dinheiro para contratar um advogado que o conduza pela mão
até o quarto degrau da escada, esqueça, é mofar num presídio ouvindo
muitos campeonatos através de seu radinho de pilha. Mas e se for, como
direi, um indivíduo abastado? Relaxe, meu caro. Contrate um advogado,
como direi, dispendioso, ponha um terno, afrouxe a gravata e vá cumprir
seus compromissos sociais.
CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E DA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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