BLOG ORLANDO TAMBOSI
A
história toda veio a público em outubro de 2020, pouco antes das
eleições americanas, em uma matéria no New York Post. É aí que começa o
problema. Twitter e Facebook resolveram reduzir o alcance de sua
divulgação. As alegações eram de que seria um material hackeado (na
verdade, não era) e que tudo não passaria de “desinformação”. Não havia
base muito objetiva para dizer isso, mas existia uma questão política em
jogo. Seu conteúdo tinha o potencial de causar um enorme estrago na
campanha de Joe Biden. O comitê democrata acusou Trump e sugeriu que a
“máquina russa de fake news” poderia estar por trás do caso. No Brasil,
nossos maníacos por censura exaltaram a “coragem” das big techs em
impedir que uma mentira daquelas se espalhasse e afetasse as eleições.
De
fato, afetou. Passados quase dois anos, indícios mostram não só que a
história merecia crédito, mas também que sua ampla divulgação poderia
ter mudado o voto de muita gente nas eleições. O que aconteceu, na
prática, foi uma interferência no debate eleitoral americano. Não uma
conspiração russa, ou coisa do gênero, mas a ação de big techs, no caso,
Twitter e Facebook, com um certo posicionamento político.
O
episódio resume bem os problemas envolvidos no argumento de que é
preciso “combater as fake news” e pôr um “limite” na liberdade de
expressão. Em primeiro lugar, ele mostra que os censores erram. E erram
feio. O Twitter alegou que os e-mails eram hackeados e por isso não
poderia permitir a difusão da notícia. Seria algo como ter bloqueado
matérias sobre as mensagens vazadas da Operação Lava-Jato no Brasil. Por
óbvio, o problema não era esse.
A
segunda questão é prática. A internet deu poder aos indivíduos, mas o
quase monopólio das redes sociais entregou a meia dúzia de empresas a
prerrogativa algo distópica de simplesmente “desligar” pessoas do debate
público. É um poder inédito, e tentador, em nossas sociedades abertas.
Afora isso, há o suporte popular. O Datafolha mostrou que 81% das
pessoas acham que notícias falsas deveriam ser imediatamente removidas
das redes. O que se esquece de perguntar: mas quem vai definir se a
notícia é falsa? Boa parte das pessoas parece imaginar a existência de
um botão mágico, que acende uma luzinha azul quando a informação é
verdadeira, ou vermelha, quando é falsa. Talvez se imagine que o botão
será controlado por uma grande comissão, regrada pela “lei das fake
news”, pela nossa Suprema Corte, ou ainda pelos próprios executivos das
big techs. Todos, quem sabe, isentos de vieses e preconceitos. No caso
de Hunter Biden, o botão foi acionado pelo Twitter e Facebook, e o
resultado não foi dos melhores.
Isso
tudo nos conta um pouco sobre o éthos da sociedade atual, marcada por
uma intolerância difusa e pelo cultivo de uma visão instrumental da
verdade. A questão central não era que “nós, que controlamos as redes
sociais, sabemos a verdade, e não vamos deixar que isso se espalhe”. Era
que “o ponto não é saber se é ou não verdade, mas atender a uma
urgência política”. No caso, derrotar Trump.
Há
muitas histórias que explicam como chegamos até aqui. A internet foi o
espaço livre que fez emergir novos atores nas democracias. A mídia
tradicional perdeu protagonismo e grupos tradicionais viram seu papel
sombreado pela multiplicidade anárquica de redes de cidadãos no espaço
digital. As “redes de indignação”, na expressão de Manuel Castells do
Occupy Wall Street, aos movimentos identitários, à esquerda, e as
múltiplas facetas da “nova direita”. A emergência dessa última, em
especial, vem funcionando como teste sobre os limites do pluralismo e da
tolerância em nosso mundo político. Boa parte da atual obsessão em
regular as mídias sociais é uma resposta a sua ascensão. Da ação das big
techs à de nossa Justiça Eleitoral, para disciplinar as redes. Surge aí
um curioso paradoxo. Em nome do “combate ao iliberalismo”, aceitam-se
doses homeopáticas do próprio veneno iliberal. Não é disso que trata a
volta da censura prévia, ficando apenas em um exemplo? Seu fio condutor é
a gramática do medo. Sob o argumento difuso do “risco” (a
“desinformação”, a “ascensão do fascismo”, a “ameaça à democracia”), o
que se vê, ao fim do dia, são escolhas políticas. E pouco importa, aqui,
que os banidos de hoje sejam de “direita”. Logo adiante os ventos podem
mudar, e o problema seguiria exatamente o mesmo.
Vai
aí um ponto crucial em todo este debate: o que está em jogo não é a
punição do crime ou a prevenção de coisas terríveis, como redes de
exploração sexual ou o tráfico de armas, como se lê por aí. Essas coisas
devem ser combatidas com rigor, assim como os crimes contra a honra. É
apenas um truque dizer que os defensores da liberdade de expressão
defendem uma “liberdade absoluta”. O que está em jogo, de fato, é a
livre expressão de diferentes visões políticas, em um mundo marcado pela
exasperação e pelo “espírito de facção”, sobre o qual tanto nos alertou
Madison.
Não
há propriamente uma solução para esse estado de coisas. Alguma luz,
porém, talvez possamos encontrar em um antigo argumento de Alexis de
Tocqueville na sua jornada americana de 1830. “Na América”, diz
Tocqueville, “não há uma aldeia que não possua o seu jornal. Todos são a
favor ou contra o governo e sua crítica é feita em milhares de formas.”
Isso impede o surgimento daquelas “ondas de opinião” que derrubam tudo à
frente. Traduzindo para o debate atual, nossa melhor chance é apostar
na diversificação das redes e mídias sociais. Se o YouTube bane um
comunicador maldito, o.k., ele poderá migrar para outra plataforma. Há
quem prefira um imenso “monopólio do bem”, capaz de nos proteger contra
“esse monte de barbaridades”, sob a firme convicção de que só há
barbaridades do lado oposto ao seu. O caminho moderno vai na direção
oposta. O melhor da cultura democrática que soubermos construir é
forjado na diversidade. No mercado aberto e descentralizado de
informação. E na aposta de que os cidadãos sejam capazes de pensar com a
própria cabeça.
É
sobre isso que nos alertam o caso Hunter Biden e tantos outros. O botão
mágico da verdade não existe. Aqueles que se apresentam como
porta-vozes do bem contra o mal, ou ainda como donos da democracia, não
são nada disso. Eles apenas nos lembram que ainda temos muito a aprender
sobre o pluralismo e a tolerância. E que não deveríamos arredar pé
desses valores, até o dia em que eles estejam definitivamente enraizados
em nossa vida republicana.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786
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