Esta guerra serviu-nos de espelho: mostrou-nos que a Europa imaginária de Macron a trilhar o seu caminho não existe. Eugénia de Vasconcellos para o Observador:
Estamos
a viver uma crise. Repetidamente, temos dito uns aos outros, é a maior
crise vivida na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Percebemos, com
mais ou menos clareza, que o mundo se reconfigurará no pós-guerra
russo-ucraniana na economia, na política, na cultura. Mas como e até que
ponto ainda não sabemos.
Será
o retorno a um mundo bipolarizado como o que saiu da Segunda Grande
Guerra, mas com a China a ocupar o lugar antes ocupado pela Rússia? Um
eixo Pequim-Moscovo? E a Europa? Afinal é o maior parceiro comercial da
China e mesmo agora é a Europa quem está a alimentar o exército russo
através do gás e do petróleo: com uma mão sancionamos enquanto com a
outra alimentamos aquele que sancionamos. É um dilema que nos
descredibiliza internamente pois não podemos ganhar sem, ao mesmo tempo,
perder. Esta é a armadilha do «duplo vínculo». O que se passa com a
Rússia, passa-se com a China. Vamos deixar de ter a China como parceiro
comercial? Ou calma e cinicamente afirmamos este é o mundo adulto da
economia global? Temo-lo feito ano após ano e, não fora a inesperada
resposta de Zelensky, e do povo ucraniano, continuaríamos a fazê-lo.
Há,
no entanto, mais variáveis a considerar. As conquistadas com a
pandemia. Afinal, cedemos liberdades para o seu controlo em cada estado
de emergência. E em todo o mundo. Oferecemos localização e dados de
saúde. Mostrámos o que pode funcionar à distância, quem e como, sejam
empresas ou pessoas. Qual a aceitação e a recusa das populações a
confinamentos, alterações de rotinas e profissionais, emergências
sanitárias, policiamento, certificação. Aceitámos testagens e medições
de temperatura em aeroportos e por todo o lado. E mais. Voluntariamente,
através de gadgets a que chamamos pulseiras de fitness, smartwatches ou
mais recentemente com os anéis Oura, produto ainda não desnatado, damos
de bandeja toda a informação de saúde, em tempo real: frequência
cardíaca, tensão arterial, actividade física, repouso, horas de sono e
de actividade e, com os anéis Oura, até a temperatura corporal. Se a
esta informação juntarmos a que já cedemos há anos em cada movimento do
cartão de crédito, da portagem com Via Verde, das câmaras de rua, dos
emails e das compras online e dos sites visitados, dos amigos do
Facebook, dos comentários no Twitter, as fotografias no Instagram, dos
telefonemas que fazemos e tanto mais que se avoluma numa quantidade de
informação cruzada que jamais qualquer polícia política teve sobre um
cidadão, compreendemos: depois de termos entregue a privacidade
entregámos também a individualidade. Como é que estes dados vão ser
tratados? Por quem? Com que objectivos? As amostras não têm sido boas,
desde a proto-tecnológica Cambridge Analytica às interferências nas
eleições norte americanas, ao milhão de uigures em vigilância,
internamento e reeducação na China. Podemos, com facilidade, conceber um
mundo onde a nossa transparência é total e a liberdade nula.
Nesta
nova bipolaridade jogar-se-ão velhos valores que já estão em jogo:
direitos humanos, liberdade, democracia, quem os defende e quem os
sacrifica.
A
invasão russa da Ucrânia coloca-nos numa situação que não se compadece
de relativismos. Putin tem sido claro. A Rússia estende-se para além
daquelas que são as suas actuais fronteiras: a Ucrânia, a Moldávia, a
Estónia, a Letónia e a Lituânia compõem esse mito territorial. Os
estados bálticos, no entanto, estão salvaguardados pela Nato. Xi
Jingping também tem sido claro. Os seus valores alinham-se com os de
Moscovo – e a Europa, paga. Não é apenas a falta de independência
energética, não é só a incapacidade de defesa. As importações europeias
da China ascendem a 472 biliões, as exportações europeias não
ultrapassam os 223 biliões, sendo a Alemanha o maior exportador (dados
Eurostat de 2021), enquanto o protecionismo chinês aumenta e a China, na
vanguarda da inteligência artificial, e a Rússia estabelecem protocolos
de cooperação quer para a exploração espacial quer de vigilância
tecnológica.
Vivemos
uma crise europeia: os meios de que dispomos não são suficientes para
responder à situação em que estamos. Esta guerra serviu-nos de espelho:
mostrou-nos que a Europa imaginária de Macron, a trilhar o seu próprio
caminho, não existe, é como aqueles miúdos de vinte anos que são muito
crescidos, mas vão lavar a roupa à casa da mãe e levam a comida para a
semana seguinte. Não há independência sem meios.
Temos de pensar a Europa que queremos ser, podemos ser, nesta reconfiguração que avança a passos largos.
A autora escreve segundo a antiga ortografia
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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