O escândalo do MEC é uma escaramuça pré-eleitoral ou traduz um padrão no trato da coisa pública? Fernando Schüler para a revista Veja:
Muita
gente pode achar o caso dos pastores e do Ministério da Educação algo
um tanto bizarro e irrelevante. Não é o meu caso. O episódio todo, que
levou à saída do ministro Milton Ribeiro, mostra a sobrevivência de
velhos males de nosso mundo político. Para começar, a desorganização da
política pública. Um órgão que se supunha técnico, como o FNDE, surge
como presa fácil ao pequeno grupo de compadrio, com acesso ao poder. Com
uma agravante: a mistura da religião com política, algo sem cabimento
em um Estado laico. Por último, a lembrança de que nosso velho
patrimonialismo continua vivo e forte. Sua melhor definição foi aquela
frase do ministro: “A prioridade são os amigos do pastor Gilmar”. É a
realização da profecia de Sérgio Buarque: a cordialidade como o doce
pecado de nosso mundo público. A vitória do trato pessoal sobre o
procedimento técnico, imparcial, regrado, republicano. A polidez que
esconde critérios de exclusão, de quem comanda, e não faz muito segredo
disso.
O
escândalo do MEC é uma escaramuça pré-eleitoral ou traduz um padrão no
trato da coisa pública? “Não há novidade nenhuma nisso”, ouvi de um
comentarista. “Em Brasília tem pressão de tudo que é lado.” Se o
veredicto é esse, segue-se o barco. Meu ponto é dizer que não. Há um
problema aí precisamente porque se configura um padrão, feito da captura
de nacos de poder, recursos, pequenos e grandes monopólios por parte do
estamento público. Ainda esta semana se divulgou o excelente estudo do
professor Luciano de Castro e outros pesquisadores sobre nosso
Congresso. Os dados são de cair o queixo. Nosso Parlamento custa 0,15%
do PIB. É o mais caro do mundo. Cada parlamentar custa 5 milhões de
reais por ano. Na Inglaterra, 477 000 reais. Eles fizeram o Bill of
Rights, em 1688, e são bem mais ricos do que nós, mas custam dez vezes
menos. Vamos lá, só pode haver um problema bastante complicado por aqui.
No
mundo dos partidos e das eleições, o padrão se repete. Estudo conduzido
pela economista Marina Helena Santos mostrou a situação do Fundão
Eleitoral. Candidatos que já eram parlamentares, nas últimas eleições,
receberam, na média, 996 000 reais para fazer campanha. Os de fora,
70 000 reais. Os deputados-candidatos já tinham seus 25 assessores,
dinheiro para viagens e despesas, e já haviam distribuído coisa de 60
milhões de reais, em emendas individuais, ao longo do mandato. No final,
levam catorze vezes mais recursos do que seus competidores de primeira
viagem. É o que o cinismo nacional costuma chamar de garantir mais
“equidade” na disputa eleitoral.
No
campo do Judiciário não é diferente. Nosso sistema de Justiça é o mais
caro, proporcionalmente, entre as grandes democracias. Nos custa 1,4% do
PIB, contra apenas 0,4% na Alemanha. Colecionamos notícias de
vencimentos muito acima do teto do funcionalismo, por parte de nossos
magistrados. Mesmo assim, tramita no Congresso, com chances de
aprovação, a PEC 63, criando um adicional de 5% a cada cinco anos, nos
vencimentos da magistratura. E pasmem: com chance de ser retroativo,
extensivo aos aposentados e não sujeito ao teto salarial. Temendo alguma
injustiça, o Senador Alessandro Vieira propôs que o benefício seja dado
a todo o funcionalismo. Ou seja: além de termos engavetado a reforma
administrativa, que iria extinguir as progressões por tempo de serviço,
corremos o risco de criar agora uma superprogressão. O mesmo Congresso
que descumpre a determinação da Constituição, no Artigo 41, de
disciplinar a avaliação de desempenho dos servidores, arrisca criar
agora um benefício sem conexão alguma com mérito. Talvez não passe. Mas
só o fato de que isso seja seriamente considerado já é um indicativo do
peso da cultura estamental, na elite política de Brasília.
Muita
gente não vê problema algum nisso tudo. “A democracia custa caro”,
escuto em rodas elegantes. Custa caro no Brasil, respondo. Temos a maior
carga tributária da América Latina, fora Cuba, e fomos o país que mais
expandiu o gasto público, na década que se seguiu à crise de 2008. Em
pouco mais de dez anos, fomos de 29,5% para 41% de comprometimento do
PIB com despesa pública. Pouco mais de 13% gastamos com funcionalismo.
Nosso aparado estatal tem tamanho europeu; nossa miséria, padrão
latino-americano. Gastamos o equivalente à Itália e países com welfare
state consolidado, como o Canadá e a Alemanha. Em matéria de pobreza,
ficamos atrás de países como Peru, Bolívia e Paraguai.
Vai
aí o dilema: nosso aparato público é caro, para o contribuinte, e
funciona, ele mesmo, como entrave ao crescimento e fator a mais de
concentração de renda. Não há como entender isso sem decifrar nosso vezo
patrimonialista. O vezo que vem do fundo de nossa formação. Do país que
nasce do Estado. Do rei que se apossa da terra e distribui à
vassalagem, da república dos coronéis, do Estado Novo organizando o
sindicalismo oficial. O vezo que está lá, em cada privilégio, em cada
monopólio, em cada priorização dos “de cima”, em cada desoneração fiscal
gerada pelo lobby. Signo de um país vulnerável à ação dos grupos
organizados, diante de uma sociedade passiva e uma legião de brasileiros
dependentes de transferências públicas. País carente de grupos de
advocacy para os interesses difusos, a começar pelos direitos do
contribuinte, e de uma cultura frágil de direitos individuais.
Por
essas e outras que volto à leitura da obra-prima de Raymundo Faoro, Os
Donos do Poder. Ela já tem mais de seis décadas, mas prossegue atual.
Nos mostra como a oposição fundamental de nosso mundo político não se dá
entre quem produz, no mercado, seja grande ou pequeno empreendedor,
trabalhador com carteira ou entregador de aplicativo, nas ruas de São
Paulo. A clivagem essencial é entre o mundo que gira em torno da captura
do Estado e o restante da sociedade, que paga a conta. O contribuinte, o
cidadão destituído de lobby, o usuário dos serviços públicos, o tomador
de risco, na economia real.
É
sobre isso o debate que vamos travar nas eleições deste ano. Haverá
muita bobagem, como sempre, mas a questão central continua a mesma: se
desejamos um país moderno e de mercado, com um Estado enxuto e feito de
direitos iguais, ou se vamos seguir com nossos pastores-lobistas, e
parlamentares recebendo 528 vezes a renda média de um trabalhador. Se o
desejo for de mudança, será preciso enfrentar a “social enormity”, na
expressão dura de Faoro, que herdamos da tradição. A deformação segundo a
qual “instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo
virgem”. Vai aí meu toque de otimismo. A tradição nos puxa pelo pé, mas
não nos amarra. A democracia nos dá, a cada momento, uma nova chance.
Nos assopra ao ouvido a ideia por vezes incômoda de que somos o
resultado de nossas próprias escolhas.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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