O noivado de Lula e Alckmin é tão confiável quanto um namoro entre José Dirceu e Bolsonaro. Augusto Nunes para a revista Oeste:
Católico
praticante que em campanha eleitoral virava carola congênito,
conservador juramentado, antiesquerdista desde os tempos do berçário,
promovido ainda na virada do século a destaque da ala direita do PSDB,
Geraldo Alckmin deve todas as vitórias nas urnas a eleitores que, para
derrotar o PT, votam em qualquer alternativa. No verão de 2022, aos 69
anos, resolveu mudar de lado — e protagonizou uma das mais assombrosas
conversões da história do Brasil. Esqueceu tudo o que disse desde que
aprendeu a falar, passou a elogiar o inimigo que vivia chamando de
ladrão, filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro e, acampado nessa
ramificação da seita que vê num corrupto o seu único deus, aguarda a
oficialização da candidatura a vice-presidente na chapa encabeçada por
Lula.
Neste
27 de março, depois de ganhar a carteirinha que identifica um
socialista brasileiro, Alckmin discursou para a plateia formada pelo que
chamou de “companheiros e companheiras” ao lado de Gleisi Hoffmann,
presidente do PT e representante de Lula na cerimônia da rendição. “Já
me sinto em casa”, recitou. A fulminante adaptação ao novo refúgio é
outra proeza sem precedentes. Geraldo Alckmin é o primeiro grão-tucano a
abandonar o ninho que habitou por 33 anos para homiziar-se numa das
cavernas controladas por quem sempre foi seu Grande Satã. O voo
solitário escancarou o diminuto cacife político-eleitoral do tucano que
por mais tempo governou São Paulo.
Até
agora, só examinam a hipótese de seguir os passos de Alckmin quatro
aliados politicamente desempregados: dois ex-deputados federais, um
ex-deputado estadual e um ex-prefeito de Santos. Um quarteto desse
calibre não assegura a ninguém o status de condutor de multidões.
Portanto, devem esperar sentados os petistas que sonham com a adesão de
um mundaréu de seguidores do recém-chegado. Na eleição presidencial de
2018, candidato do PSDB pela segunda vez, Alckmin conseguiu menos de 5%
dos votos — desempenho que o mandou para casa ao fim do primeiro turno e
por pouco não incorporou o tucano depenado ao bloco que inclui o Cabo
Dacciolo. Mais: a votação alcançada no Estado que o elegera três vezes
governador confirmou que no território paulista, dividido entre lulistas
e bolsonaristas, não existem alckmistas.
Nunca
existiram, e Alckmin sempre soube disso. Menos carismático que político
de novela interpretado por Zé de Abreu, tão sedutor quanto manequim de
vitrine, ele não conseguiu criar uma tribo que pudesse chamar de sua — e
o tornasse menos dependente do eleitorado antipetista. Foi sobretudo
para derrotar o candidato invariavelmente indicado por Lula que milhões
de paulistas de nascimento ou por adoção votaram em Geraldo Alckmin três
vezes. Em 2002, o vice que assumira o cargo com a morte de Mário Covas
venceu José Genoíno no segundo turno. Em 2010, derrotou Aloizio
Mercadante já no primeiro. Quatro anos mais tarde, também no turno
inicial, impediu a entrega do principal gabinete do Palácio dos
Bandeirantes ao ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha.
Em
2006, ao estrear no horário eleitoral da TV, o médico anestesista que
virou político caprichou no patético esforço para ficar mais parecido
com o brasileiro comum. Aconselhado pelos marqueteiros da campanha,
amputou o sobrenome difícil de escrever e apresentou-se como Geraldo. A
maluquice durou pouco. Alguém decerto ponderou que, no país que dá
preferência a diminutivos, Geraldo vira Gê ainda nos trabalhos de parto.
O prenome completo é usado só pela mãe e pelas professoras do ensino
fundamental. Também a conselho da turma do marketing, o brando paulista
de Pindamonhangaba ficou mais agressivo nos duelos verbais. “O governo
Lula tem duas marcas: parado na economia e acelerado nos escândalos”,
afirmou durante um debate na TV Record. Em outro, Lula denunciou a
existência de focos de corrupção na máquina administrativa estadual
comandada pelo oponente. “De corrupção você entende”, ironizou Alckmin.
Derrotado
no segundo turno, Alckmin manteria a agressividade em todos os embates
seguintes. Em agosto de 2014, pouco depois da escolha de Alexandre
Padilha, uma coluna publicada no site da revista Veja constatou que “em
São Paulo, o PT não lança candidatos a governador; lança ameaças”. A
afirmação se apoiava na fila puxada por Lula em 1982 e engrossada, nos
anos seguintes, por gente como José Dirceu, Marta Suplicy, José Genoíno
ou Aloizio Mercadante (duas vezes). “Posso usar essa frase na minha
campanha?”, perguntou Alckmin ao colunista. Liberado, usou-a para
lembrar que Padilha era o perigo da hora. Em 2018, o candidato à
Presidência elevou o tom em muitos decibéis.
“Não
existe a menor chance de aliança com o PT”, avisou. “Vou disputar e
vencer o segundo turno, para recuperar os empregos que eles destruíram
saqueando o Brasil. Jamais terão o meu apoio para voltarem à cena do
crime.” Nenhuma acusação ficou sem revide. Alckmin foi acusado mais de
uma vez de tratar com especial deferência o comando do PCC. E ouviu em
todas as campanhas que tratava a pontapés quem tentava instaurar alguma
CPI para impedir a devassa de focos criminosos no governo estadual. Em
novembro passado, examinava a ideia de concorrer pela quarta vez ao
governo de São Paulo para vingar-se de João Doria, que o isolou no PSDB
depois de eleger-se prefeito da capital, quando lhe foi oferecida a
chance de tornar-se vice-presidente sem suar camisas listradas de mangas
compridas na extenuante caça ao voto.
No Brasil, eleitores que escolhem o presidente por apreço ao vice são tão raros quanto a ararinha-azul. Se alguém se tornou eleitor de Lula porque Alckmin trocou de time, ganha uma viagem a Cuba (com escala na Venezuela). Mas o chefão do PT não propôs o acordo de olho no eleitorado que Alckmin não tem. O que Lula busca com a aliança é transmitir um recado: quem tem um vice com tal perfil não vai enveredar por descaminhos esquerdistas. “A esperteza, quando é muita, fica grande e come o dono”, advertia Tancredo Neves. A conversão de Alckmin pareceu tão espontânea quanto seria a adesão de José Dirceu à candidatura de Jair Bolsonaro. Por se achar traído por João Doria, o agora socialista brasileiro traiu milhões de eleitores. Para candidatar-se a vice, jogou na lata de lixo a biografia e a vergonha.
“Nós
temos que ter os olhos abertos para enxergar e ter a humildade de
entender que Lula é hoje aquele que melhor reflete o sentimento de
esperança do povo brasileiro”, torturou a forma e espancou o conteúdo
durante o falatório de estreia no PSB. A frase seguinte espalhou a
suspeita de que o novo companheiro está estudando dilmês: “Lula
representa a democracia porque é fruto dela. Por ter conhecido as
vicissitudes, é quem interpreta o sentimento da alma nacional”. A
conversa fiada tenta camuflar o principal motivo da virada de casaca.
Caso se consume a vitória da dupla, Lula subirá a rampa do Planalto com
77 anos e um prontuário médico que inspira cuidados. Alckmin estará com
sete anos a menos e a saúde em bom estado. Todo vice tem na esperança a
principal razão de viver.
Alckmin
já foi mais sagaz. Confiante nos critérios biológicos, parece ignorar
que o PT nunca aceitou a perda do poder federal nem para adversários
políticos nem para beneficiários de conversões convenientes. Depois da
segunda vitória no primeiro turno, Fernando Henrique Cardoso não escapou
dos gritos de “Fora FHC!”. O substituto de Dilma Rousseff, despejada
pelo impeachment do Palácio do Planalto, foi acompanhado o tempo todo
pelo mesmo berreiro: “Fora Temer!”. Se por qualquer motivo herdar o
cargo, o presidente Geraldo Alckmin será imediatamente transformado no
inimigo a abater. Órfão de eleitores e parceiros políticos, terá de
resistir com a ajuda da família e meia dúzia de amigos à gritaria
impiedosa e interminável: “Fora Alckmin!”
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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