A Alemanha pode ter ótimas razões para defender uma abordagem mais contida em relação à guerra e a Moscovo, mas a verdade é que Berlim tem estado atrás das decisões europeias. Henrique Burnay para o Observador:
Desde
o início da guerra na Ucrânia que a Alemanha não lidera a resposta
europeia. É empurrada pelos Estados Unidos, puxada pelos polacos,
ultrapassada por Macron, embaraçada pelos países bálticos e, de um modo
geral, parece estar sempre a ir para onde, se pudesse, não iria. Quando
podia ser o motor da resposta europeia, mesmo que fosse para dar algumas
respostas mais realistas que idealistas. Mas não é o que tem
acontecido. E há uma longa razão para isso.
No
último jantar que teve em Berlim com a Chanceler Angela Merkel, já
depois da eleição de Donald Trump como seu sucessor, Barack Obama
ter-lhe-á dito que ela era, agora, a líder do Mundo Livre. Não se sabe o
que Merkel respondeu, mas pode-se imaginar.
Apesar
da sua responsabilidade na transição para o Pacífico e de algum
desinteresse pela Europa ao longo das suas presidências, Obama sabia
duas coisas: o Ocidente ainda era uma ideia, antes de mais, americana e
europeia; e, não estando na Casa Branca um crente na relação
transatlântica (convém lembrar que Trump chegou mesmo a dizer que os
europeus eram inimigos), a liderança do Ocidente (que é o mesmo que o
Mundo Livre para os presidentes americanos) havia de estar na Europa e,
em particular, em quem liderava de facto a União Europeia. Até porque à
época os britânicos já tinham decidido sair da União Europeia e nunca
tinham querido liderá-la enquanto lá estiveram.
Merkel
teve várias virtudes e defeitos, mas há uma coisa que não soube ser,
provavelmente porque não quis: líder do Mundo Livre ou do Ocidente. Não
foi só quando um dia respondeu ao Financial Times que isso do Ocidente
era um conceito que mudava muito conforme a geografia. O problema foi
sempre outro. Merkel tinha valores e, quando foi necessário, mostrou-os,
mas acreditava mais na estabilidade e no comércio e negócios entre os
países do que na ideia de Ocidente e de Mundo Livre. E, talvez até por
razões pessoais, evitava o proselitismo. Mas o problema não é só seu, é
mesmo alemão.
Há duas histórias de antes da guerra na Ucrânia que importa não esquecer.
Primeira:
a dependência energética e a traição alemã ao leste. Desde o início da
construção do Nord Stream I (o gasoduto que está a funcionar e por onde
vem o gás russo) que a Ucrânia e a Polónia, entre outros, avisaram que a
Alemanha estava a criar uma relação directa com a Rússia que permitia
que um dia Moscovo lhes fechasse a torneira do gás continuando a
fornecer os alemães. Ou, não disseram mas foi o que veio a acontecer,
que os russos atacassem a Ucrânia sem que isso implicasse deixarem de
enviar gás para a Alemanha, e receber o respectivo pagamento. Ou seja,
se houve alguém que não prestou atenção ao risco da dependência
energética da Rússia e que confiou na relação directa (e exclusiva,
porque a Alemanha nem sequer tem como receber gás liquefeito, em
alternativa), foi a Alemanha. (E nem se fale do antigo chanceler
Schroeder que trabalha para a Rússia, porque isso é quase do domínio da
corrupção. Pelo menos moral.)
A
segunda lição foi a que vimos há umas cinco semanas, em Washington. Foi
Joe Biden, não foi o Chanceler Olaf Scholz, que avisou que em caso de
invasão russa da Ucrânia os alemães saberiam o que fazer quanto ao
Nordstream II (que ainda não estava a funcionar). Durante toda a
conferência de imprensa conjunta, Scholz fez de tudo para evitar o
assunto. E só quando a Rússia de facto invadiu é que a Alemanha se
convenceu que teria definitivamente de abdicar do gasoduto que
duplicaria a sua relação energética com a Rússia. Assim como foi a
Alemanha (se ignorarmos a Hungria, que é todo um outro problema) que
mais resistiu ao envio de armamento para Khyv, quando vários países
europeus o estavam a querer fazer, ainda antes do começo da guerra.
Pode
ser por realismo económico, porque sabe que do gás russo depende muita
indústria europeia, porque sabe que a geografia é uma condição imutável e
a Rússia será sempre vizinha da Europa, ou porque sabe que o diálogo
tem de ser sempre possível. Seja porque for, a Alemanha pode ter óptimas
razões para defender uma abordagem mais contida em relação à guerra e a
Moscovo (e embora internamente tenha tomado a decisão radical de
aumentar extraordinariamente o investimento na defesa), a verdade é que
Berlim tem estado atrás das decisões europeias, não por detrás. Tem
seguido, não tem liderado. Tem resistido.
A
semana passada, o presidente Biden foi à Polónia mostrar que estavam
ali soldados americanos e dizer até o que muitos pensam mas não dizem (e
alguns acham mesmo que não se deve dizer). Scholz, não tem feito nada
disso. Na televisão, recusou-se a chamar criminoso de guerra a Putin; no
envio de meios de defesa, resistiu o mais que pôde e enviou
proporcionalmente muito menos do que outros Estados europeus bem mais
pequenos; e na discussão energética não tem conseguido dizer mais do que
a verdade (o gás russo é, neste momento, indispensável à economia
europeia), sem dizer nada com significado político europeu.
A
invasão russa da Ucrânia marca, manifestamente, uma das maiores
transformações políticas no mundo, no Ocidente e na Europa. E na
Alemanha também, mas por arrasto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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