A internet virou um grande Coliseu, onde o prazer da plateia é ver pessoas sendo atiradas às feras. Fica todo mundo na expectativa de saber qual vai ser a próxima oportunidade de ostentar virtude destruindo a vida dos outros. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Na
semana que passou, o Corpo de Bombeiros resgatou um grupo de 32
turistas que faziam uma trilha no Pico dos Marins, na Serra da
Mantiqueira. Eles estavam acampados e foram surpreendidos, na madrugada,
por um temporal que arrastou as barracas. Isolado em uma região de
terreno acidentado e sob forte chuva e ventania, o grupo acionou os
bombeiros, e a operação de resgate foi bem sucedida. Ninguém ficou
ferido, todos voltaram para casa em segurança.
Duas
coisas me chamaram a atenção nesse episódio, até certo ponto banal.
Primeiro, ele sinaliza a nossa dificuldade para aceitar e administrar
riscos, sobretudo quando lidamos com forças da natureza. Vivemos em uma
ilusão de segurança e controle que é frequentemente desafiada e
confrontada por acidentes desse tipo – e, simplesmente, não aceitamos
quando esses acidentes acontecem.
Acho
que temos uma tendência a teimar em testar a sorte. Em alguma medida,
somos todos negacionistas na nossa relação com as tragédias, naturais ou
não. Mas a dura realidade é que a natureza é indiferente às nossas
crenças, ilusões, expectativas e convicções – como acaba de ficar
demonstrado, aliás, no trágico acidente no lago Furnas, em Capitólio,
MG.
Por
maiores que sejam as precauções, nada impede que, de um momento para o
outro, uma tragédia, individual ou coletiva, aconteça. Faz parte da
nossa condição no mundo, mas custamos a compreender e aceitar isso.
Colocar
os pés para fora da porta de casa já implica alguma dose de risco – e
às vezes nem é preciso sair de casa. Por óbvio, fazer uma trilha em uma
montanha de 2.400 metros envolve riscos muito maiores, como qualquer
coisa que se aproxime de uma aventura. Isso torna necessário uma grande
dose de responsabilidade e preparo por parte dos guias, naturalmente,
além de um protocolo de segurança que precisa ser cumprido. Segundo as
informações divulgadas, é provável que tudo isso tenha faltado, mas é
difícil jugar sem conhecer os detalhes.
Contudo,
isso não muda o fato de que qualquer pessoa que espontaneamente se
dispõe a fazer uma trilha como a do Pico dos Marins sabe que a
experiência envolverá imprevistos – e será diferente de ficar no quarto
jogando videogame.
Quem
gosta de aventura gosta justamente de enfrentar e superar riscos. Eu,
por exemplo, prefiro ir à praia ou ficar em casa lendo a escalar uma
montanha sob chuva, mesmo sabendo que jamais experimentarei a adrenalina
e as emoções de quem prefere escalar a montanha. Cada um na sua.
Pois
bem, a segunda coisa que me chamou a atenção foi a cobertura do
episódio pela grande mídia. Desde o primeiro momento, rigorosamente
todas as matérias sobre o caso vêm apresentando o guia (ou “coach”) não
como o fanfarrão que parece ser, mas como um bandido, quase um assassino
que teria colocado deliberadamente o grupo de trilheiros em risco de
morte. Já vasculharam sua vida pregressa, e ele está sendo acusado e
desqualificado na mídia até mesmo por oferecer um curso motivacional de
“quase R$ 3 mil”, com um ano de duração, como se isso fosse um crime.
Fico
pensando: 20 anos atrás, episódios semelhantes dificilmente se
transformariam em pretexto para linchamentos virtuais. O tom das
reportagens teria sido de alívio pelo sucesso da operação de resgate. Os
bombeiros entrevistados recomendariam às pessoas que tomassem mais
cuidado para prevenir acidentes, não entrariam em bate-boca virtual
ostentando virtude.
Mas
hoje não: no episódio em questão, os jornalistas, os leitores que
comentam as reportagens e os próprios bombeiros parecem sentir um
inegável e estranho prazer em esfolar o guia da trilha. É o Cristo da
vez. Na semana que vem, será outro. A compulsão das pessoas para apontar
o dedo e condenar em julgamentos sumários só aumenta.
Parece
que a internet virou um grande Coliseu, onde o prazer da plateia é ver
outras pessoas sendo atiradas às feras. Fica todo mundo na expectativa
de saber qual vai ser a próxima oportunidade de ostentar virtude
destruindo a vida dos outros. Nem é o caso, mas quanto mais famoso e
bem-sucedido for o alvo, melhor – porque, para os ressentidos de
plantão, dá mais prazer ver uma estrela cair do que uma estrela brilhar.
O
problema, ressentido de plantão, é que amanhã o atirado às feras pode
ser você. Quando mais não seja, pelo simples fato de que todo mundo
erra. Lembre-se do clichê que diz que, quando você aponta um dedo para o
outro, outros três dedos ficam virados para você.
Estamos virando uma sociedade de linchadores “do bem”. Nada de bom pode vir daí.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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