O Homo sapiens sem uma cognição aguçada é como um pássaro com a asa quebrada. Luiz Felipe Pondé via FSP:
Se
uma propaganda vende pra você um carro e faz você sentir que, comprando
este carro, pode ir a uma cachoeira de difícil acesso —no caso de um
carro ter tração nas quatro rodas—, ela não está mentindo. Mas se um
comercial de banking diz que se você abrir uma conta no banco X, você
será o tipo de jovem que deixará "sua marca no mundo", ele está
mentindo.
Qual a diferença entre um comercial e outro? Por que um deles mente e o outro não?
A
diferença está no alcance da promessa. Alcançar cachoeiras difíceis é
algo de pequeno impacto na percepção que alguém tem de si mesmo, da sua
vida, da sua personalidade e das suas expectativas.
Quando dizemos a um jovem que ele, comprando um produto X, deixará uma marca no mundo,
estamos mentindo sobre seu futuro: quase zero por cento da humanidade
deixa alguma marca no mundo —algumas delas péssimas—, ao passo que
embutir essa expectativa como estilo de vida tem um custo altíssimo em
termos do cotidiano que alguém vive.
Parte da pré-história e da história da nossa espécie foi
gasta num esforço descomunal para fazermos a diferença entre realidade e
fantasia, por motivos, principalmente, de sobrevivência. Mas essa
questão da sobrevivência nos escapa da consciência hoje.
Por
exemplo, nossos ancestrais, idênticos a nós, passaram quase o tempo
todo de suas vidas com fome e hoje as maiores frescuras do mundo se
relacionam a comida. Só a fartura sustenta a frescura com alimentação.
Quando
o mundo faz a guinada que está fazendo, e o marketing assume a
liderança das narrativas, assumimos que existem em nós super-heróis,
mitos, deuses e deusas, demônios e efeitos sobrenaturais, o que,
evidentemente, não existe. Brincamos com danos psicológicos e sociais
empacotados pra presente. O marketing é um retrocesso cognitivo na
evolução da espécie. O Homo sapiens sem uma cognição aguçada é como um pássaro com a asa quebrada.
No
momento em que o marketing se fez disciplina existencial, passando a
vender estilos de vida, identidades sexuais e outras, valores morais,
projetos políticos —aqui a mentira é facilmente detectada para quem tem
olhos pra ver— e significados para a vida, ele passou a se constituir
numa percepção de realidade de alto risco, estragando a capacidade de
fazermos a diferença entre fato e ficção. É como se o mundo fosse um
eterno Carnaval em que a Quarta-Feira de Cinzas nunca chega.
O
capitalismo avançado apenas quer vender. Tendo saturado as sociedades
ricas de produtos materiais, ele passa a vender produtos imateriais, e,
com esse passo, ele opera uma ruptura metafísica, digamos, em que
optamos por viver num mundo em que nós mesmos somos mera ficção —a
melhor ficção possível, claro, mas nem por isso, menos irreal.
Todas
as realidades psíquicas passam pelo crivo da fantasia e saem do outro
lado como a "melhor versão de mim mesmo". Mentira. Posso me reinventar.
Mentira. Deixarei minha marca no mundo. Mentira. A prosperidade é uma
questão de assertividade. Mentira: a esmagadora maioria foi, é e
continuará sendo pobre.
A
maior chance é que você envelhecerá só e que terá tido uma vida
absolutamente irrelevante, se a sociologia estiver certa. O arquétipo da
mentira aqui é que você seja uma pessoa diferente, especial, única.
Mentira. Você é apenas banal. Esse arquétipo tem a parceria dos pais,
que são os primeiros a comprar o marketing de "deixar uma marca no
mundo".
Muitos
profissionais da área não têm a mínima ideia de tudo isso porque a
formação é muito fraca. Munidos de teorias psicológicas miseravelmente
comportamentais, reforçam apenas os mecanismos fantasiosos na relação
com a realidade e com nós mesmos. Com a entrada do digital, o processo
eleva sua agressividade mitológica ao nível da vida privada como
mercadoria e do sujeito como commodity.
Por
outro lado, o marketing poderia ser de fato "disruptivo" e elevar o
nível da reflexão, como alguns profissionais têm tentado, e parar de
mentir. Muitos adultos estão ávidos por pessoas que mintam menos para
eles. Estão cansados de serem tratados como retardados mentais.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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