Isabelle Hupert como Madame Bovary |
Em
algum momento do século passado, cheguei a Paris e no mesmo dia comprei
um exemplar de Madame Bovary numa livraria do Quartier Latin chamada
Joie de lire. Depois de passar a maior parte da noite lendo, ao
amanhecer já sabia o tipo de escritor que queria ser e, graças a
Flaubert, estava começando a aprender todos os segredos da arte do
romance.
Ninguém
deu maior ímpeto ao gênero romance que o solitário de Croisset. Ele
descobriu que o narrador era o personagem mais importante que o
romancista podia criar, e que este poderia ser um narrador impessoal que
sabia de tudo - uma imitação de Deus Pai - ou um contador personagem, e
que estes podiam ser vários e diversos. Desse modo, Flaubert criou o
romance moderno e lançou as bases daquilo que, anos depois, seriam os
infinitos arranjos e figuras inventadas por James Joyce para dotar o
romance e diferenciá-lo do passado, dos clássicos. Mas o romancista que
melhor aproveitou as invenções de Joyce, o irlandês, não foi um europeu,
mas sim um americano perdido na região do Mississippi, em cujas mãos o
gênero ficcional alcançou uma flexibilidade no tempo e no espaço que
permitiu todos os excessos: William Faulkner. O mais extraordinário de
Faulkner, no entanto, não foi a fantástica audácia que lhe permitiu
escrever romances como Enquanto Agonizo e O Som e a Fúria, as mais
difíceis da criação do gênero, mas sim os enganos dos jornalistas a quem
se apresentava “como um fazendeiro que amava cavalos” e se recusava a
falar sobre as técnicas do romance porque, segundo ele, “nada sabia
sobre essas coisas”. Graças a Flaubert, Joyce e Faulkner, o romance
moderno seria uma realidade nova e singularmente diferente do romance
clássico.
No
caso de Flaubert, a preocupação com a estrutura do romance vinha nas
cartas que escrevia todas as noites para sua amante, Louise Colet,
durante grande parte dos cinco anos que levou para escrever Madame
Bovary. Passaram-se muitos anos antes que essas cartas pudessem ser
reunidas em livro, talvez o mais importante que jamais foi escrito,
colocando os limites do romance moderno como uma forma perfeitamente
estabelecida e distinta de tudo o que até então se havia feito em
algumas histórias que teriam o nome de “romance”. A ruptura com o
passado foi flagrante, mas misteriosa. Consistiu em explicar que o
ordenador de uma história podia ser a imitação de “Deus Pai” que tudo
sabe de tudo, ou uma simples personagem que não pode saber mais do que
aquilo que os seres comuns sabem dos outros, com a falibilidade
implícita nesse conhecimento. Dentro de um romance, como em Madame
Bovary, pode haver um narrador “Deus Pai” e vários narradores
personagens, desde que respeitados os limites de cada um.
No
plano da prosa, Flaubert sempre acreditou que a excelência da frase
dependia de sua música e que bastava uma sílaba desafinada para que se
perdesse aquela perfeição musical - a que Flaubert atribuía virtudes
encantatórias. Os cinco anos que passou escrevendo Madame Bovary foram
os mais ricos e criativos do ponto de vista da estrutura do romance.
Verdade seja dita: o verdadeiro criador do romance moderno foi Flaubert.
A
história de Emma Bovary e as cartas quase diárias para Louise Colet
foram a fundação do romance moderno, ainda que esse fato tenha levado
algum tempo para se revelar. O narrador invisível é a criação mais
importante de Flaubert: aí está aquele que sabe tudo sobre a história
que conta, mas que não é uma presença. É uma ausência que sabe tudo o
que acontece, mas não se mostra. Bem ao contrário, esconde a sua
presença fingindo impessoalidade, sempre interrompido pelas demais
personagens da história, que podem mostrar e sentir uma presença e uma
existência limitadas, desde que não ultrapassem o que uma pessoa deve e
pode saber.
O
ângulo de foco é sempre a obra do narrador “Deus”, que distribui as
aparições e reaparições das personagens de acordo com as diferentes
flutuações da história. Nesse esquema, pode-se conhecer e contar tudo,
até mesmo os sábios silêncios que o narrador impõe à narrativa.
O
“novo romance” que Flaubert inventou em Madame Bovary permite tudo,
dentro de certos limites. Por exemplo, criar uma personagem coletiva e
momentânea, como aquela sala em que o novo aluno irrompe no início do
romance, quando a professora apresenta Charles Bovary. Esse auditório é
uma personagem só, que se dividirá em diferentes seres à medida que os
alunos recuperarem sua personalidade e começarem a se diferenciar uns
dos outros.
No
esquema criado por Flaubert, tudo é possível e coerente, desde que o
romancista respeite as regras e não se distraia, para que não ocorra um
acidente que desmorone a arquitetura rigorosa do romance.
Não
foi facilmente que Flaubert se tornou aquele que podia passar cinco
anos de vida escrevendo da manhã à noite, sete dias por semana, Madame
Bovary. Antes teve de inventar uma enfermidade que convencesse seu pai, o
Doutor, que, é claro, queria que o filho Gustave seguisse sua carreira.
Críticos e médicos vêm discutindo bastante sobre a famosa doença de
Gustave Flaubert, aquelas crises que o atingiam e o derrubavam ao chão,
vendo luzes estranhas. Acredito que essa enfermidade ele a inventou para
poder trabalhar em paz, dedicando todo o seu tempo à escrita - o que
não significava em absoluto que ele às vezes não caísse no chão e visse
luzes estranhas e tivesse vômitos e tudo mais. Ainda bem que suas cartas
para Louise Colet foram preservadas. Ela as guardou, bendita seja sua
memória. Mas as cartas de Louise Colet a Flaubert, porque seriam muito
pornográficas, foram queimadas por uma sobrinha infame, que assim ganhou
todo o ódio dos flaubertianos (também o meu, é claro).
Flaubert
sabia da revolução que iria desencadear com Madame Bovary? Não dá para
saber. Ele acreditava, ao longo daqueles cinco anos, que estava
trabalhando em Madame Bovary e provavelmente não estava ciente da
extraordinária difusão que teria sua descoberta, nem da revolução que
provocaria o narrador invisível e total, que abriria uma cisão entre o
romance novo e o antigo, isto é, o clássico. Não é a primeira vez na
história da literatura que alguém, como que por acaso, descobre um novo
sistema narrativo e gera uma revolução (por exemplo, Borges em seus
contos).
Sempre
tive admiração e carinho por Flaubert, como a um tio ou avô. Fui a
Croisset não sei quantas vezes para reviver seus passeios gritando na
“alameda da gritaria”, onde ele ia testar a perfeição de suas frases
rítmicas. Também lhe levei flores não sei quantas vezes naquele
cemitério cheio de sepulturas e de cruzes e visitei o hospital de seu
pai, o médico que o obrigou a sustentá-lo enquanto ele escrevia aquele
romance-rio.
Ele
tem hoje duzentos anos e a forma de escrever romances que inventou está
sempre viva e jovem. Tenho a sensação de que, nos duzentos anos que
virão, sua maneira de escrever seguirá operando em sua eterna juventude.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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