Se você trai um amigo por uma causa, você mais cedo ou mais tarde vai trair a causa – porque vai trair qualquer coisa. Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:
“Se
tivesse que escolher entre trair o meu país e trair um amigo”, escreveu
em um ensaio o romancista inglês E.M.Forster, “espero que eu tivesse a
coragem de trair o meu país”.
O
ensaio é de 1938. Começa dizendo que aquela época desprezava a amizade
como um luxo burguês, e que havia no ar a expectativa de que todos se
livrassem desse luxo para se dedicarem a alguma grande causa política.
Entre a amizade e uma causa política, no entanto, Forster escolhe se
manter leal à amizade. “Mas provavelmente ninguém vai me pedir para
fazer uma escolha tão difícil”, ele diz lá logo no início do ensaio.
Ele
podia ser otimista nesse ponto porque vivia em 1938, uma época em que,
se você estivesse fora de certos países, podia viver e se expressar com
alguma liberdade, e não em 2021, uma época em que não há nenhum país em
que você possa viver ou se expressar com liberdade.
– Ah é? Mas aqui nessas colunas você não diz tudo que pensa, sem sofrer consequência nenhuma?
Não, jamais. Não digo tudo que penso nem para uma samambaia, quanto mais numa coluna.
O
caso é que, em 1938, Forster podia ter alguma confiança de que ninguém
ia pedir a ele que escolhesse entre trair uma amizade ou trair uma causa
política. Agora que todos os dias vemos pessoas rompendo publicamente
com membros da família por causa de opiniões políticas, podemos ter a
mesma confiança?
Veja
por exemplo o caso de Patton Oswalt e Dave Chappelle, dois cômicos
americanos. Ano passado Dave Chappelle gravou um especial para a Netflix
em que fez algumas piadas com transexuais. Vi esse especial. Essas
piadas foram tão inteiramente benignas que não provocariam a ira de
Hitler, se Hitler fosse transexual. Não estou exagerando. Se essas
piadas fossem ouvidas por um conselho formado pelas versões transexuais
dos personagens mais irritáveis que já existiram (o deus Júpiter, o
Hulk, o Pato Donald, o Diabo da Tasmânia, o Wolverine, o Ren do Ren
& Stimpy, e o Moe dos Três Patetas) nenhum deles se irritaria. Mas
os transexuais da vida real, ou pelo menos da internet, se irritaram, e
pediram a cabeça de Dave Chappelle.
Na
noite do Ano Novo, Patton Oswalt, comediante, guia moral de toda uma
geração e a voz do ratinho em Ratatouille, postou no seu Instagram uma
foto de si mesmo abraçado em Chappelle. “Que bom encontrar um velho
amigo”, escreveu ele inocentemente. Foi muito xingado. Quer dizer,
imagino que tenha sido muito xingado, embora no Instagram só apareçam
comentários reclamando que ele apagou os xingamentos. Podem ter sido só
três xingamentos, pelo que dá pra descobrir. Não importa: em menos de 24
horas ele já tinha postado um pedido de desculpas por ter postado a
foto com seu amigo Chappelle:
“Lamento,
lamento mesmo, não ter pensado em quanta dor isso ia causar. Ou na
PROFUNDIDADE (maiúsculas dele) dessa dor. (…) Nós nos conhecemos desde
que somos adolescentes… Mas também discordamos 100% sobre direitos dos
transexuais. Eu apoio os direitos das pessoas trans – os direitos de
qualquer um – de viver em segurança no mundo… Eu sou um aliado LGBTQ…”
Sou
só eu, ou essa parte, “discordamos 100% sobre direitos dos transexuais.
Eu apoio os direitos das pessoas trans (…) de viver em segurança no
mundo…” dá a entender que Chappelle não apoia isso? Talvez só eu e todas
as pessoas que se comunicam com palavras, não?
Enfim,
o pedido de desculpas provocou, como sempre, mais fúria; a esta altura a
única pessoa que deve ficar surpresa quando um pedido de desculpas não
dá certo é Patton Oswalt.
Se
você trai um amigo por uma causa, você mais cedo ou mais tarde vai
trair a causa – porque vai trair qualquer coisa. Se você trai a conexão
mais próxima, por que não trairia as mais distantes? Se não é leal a
quem você toca, com quem você bebe, com quem você ri, por que seria leal
a pessoas sobre as quais você só lê a respeito de vez em quando?
Enfim,
quando as turbas vierem me pegar, não quero que meus amigos passem
momentos muito angustiantes tendo que decidir se salvam a amizade ou a
própria pele. Escrevi o texto abaixo para que os meus amigos usem:
“Fui
amigo do Alexandre durante alguns anos (não diria muitos), mas acho que
ele escondia de mim os pensamentos mais horríveis que passavam pela sua
cabeça. Se não tivesse escondido, eu teria rompido a amizade faz tempo.
Meus próprios pensamentos são invariavelmente puros, e juro que falo
sempre tudo que penso, na mesma hora em que o pensamento me ocorre.
Esses recentes comentários horríveis dele me pegaram de surpresa. Quando
estávamos juntos falávamos só sobre o filme As Aventuras de Buckaroo
Banzai, e às vezes sobre tipos de queijo. Por favor, podem persegui-lo,
mas eu não tenho nada com isso.”
Peço aos meus amigos que salvem o parágrafo acima para usar quando for conveniente.
E.M.Forster
termina o ensaio lembrando que Dante colocou Brutus e Cássio no círculo
mais baixo do inferno, pelo crime de traírem um amigo, Júlio César, em
vez de traírem Roma. Tem algum círculo ainda mais baixo para colocar
Patton Oswalt, que traiu um amigo – nem vou dizer para não irritar os
transexuais, porque muitos deles nem devem ter sabido da história – mas
para não desagradar alguns ativistas transexuais de internet?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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