Ao procurar uma imagem para ilustrar este texto, me ocorreu esta pergunta: Barrabás foi perdoado? Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff:
Não
existe nada mais difícil do que ser misericordioso. Ou caridoso. Por
isso os ensinamentos cristãos de 2000 anos atrás são tão fascinantes. E
tão difíceis de serem assimilados e incorporados à vida cotidiana.
Sobretudo aqui na nossa contemporaneidade, com tantos guerreiros
narcisistas que, por detrás de uma tela de computador ou celular, travam
guerras sem sangue, mas não isentas de vítimas.
Há
anos, e aos sobressaltos, tento aplicar a ideia da misericórdia (como
humildemente a compreendo) à guerra ideológica – com pouco sucesso e
muito fracasso. Afinal, imagine chegar aqui hoje, em plena
segunda-feira, e sugerir aos leitores da Gazeta do Povo que vejam Lula
pelo que ele é: um homem que, apesar do poder, da influência e da
riqueza, não pode nem tomar uma cachacinha no bar da esquina com os
amigos de sindicato. Um homem corrompido pela própria ideia de grandeza e
benevolência, incapaz de se olhar no espelho e se ver por inteiro. Um
homem tão escravizado pela imagem que os outros fazem dele que já nem
sabe quem é. Um leproso moral que anda pelas ruas negando o caráter
contagioso das próprias chagas.
Para
mim, tudo isso é castigo o bastante. E é justamente por isso que a
anulação das sentenças contra Lula não faz nem cócegas. Tá, talvez faça
um pouquinho, mas só na planta do pé. Mas sou exceção, reconheço. E
também vacilo nessa minha excepcionalidade. A depender da cor do meu
café-com-leite matinal e do formato e do peso das nuvens, tendo a ser
mais ou menos severo com esses líderes que se veem como deuses, mas
(sabemos eu e você e até a torcida do Flamengo) não passam de cadáveres
prematuros à espera da terra que os cobrirá – porque cobrirá a todos
nós.
Castigo
maior, para mim, seria dar a Lula uma cópia de “A Morte de Ivan Ilitch”
ou “Lições de Abismo” e trancafiá-lo por alguns anos, até que ele
saísse do cativeiro com uma compreensão profunda de sua existência. Mas
talvez isso seja uma forma de tortura proibida pela Convenção de Genebra
– menos pelas obras-primas citadas e mais pela crueldade de obrigar
alguém a se olhar no espelho por tanto tempo. Eu mesmo talvez não
suporte se um dia for obrigado a passar mais de cinco minutos diante do
amontoado de pecados e erros que sou.
E,
antes que você fique aí todo revoltadinho porque citei Lula e não
Bolsonaro ou Moro ou Doria ou o Cabo Daciolo, aqui está a frase que,
apesar da obviedade, há de me redimir na manhã nublada de domingo em que
escrevo este texto: não estamos cercados nem somos liderados por santos
de nenhum tipo. E todos esses homens que sobem ao púlpito da política
para oferecer nossa sanidade em sacrifício à deusa Democracia,
fomentando uma guerra fratricida (ou parricida, no caso do meu amigo que
brigou com o pai petista), são dignos, sim, da nossa mais sincera pena,
misericórdia, caridade.
E na vida?
Exercer
a misericórdia na vida cotidiana é ainda mais difícil do que na
política. E eu, como todos nós, erro mais do que acerto. Mas, na base do
estudo, da experiência e das muitas (muitas mesmo!) surras da vida,
essa professorinha atraente, mas severa, aprendi um bocado ao longo dos
últimos anos. E se você acha que a frase anterior é expressão de uma
vaidade repreensível e até repugnante (e é mesmo), tente ser
misericordioso comigo agora (tentarei também).
Hoje
em dia, com os joelhos eternamente ralados pelos tropeços da juventude,
quando vejo perto de mim uma manifestação do que considero canalhice
& perversidade, não saio correndo para escrever sobre o assunto e o
ofensor e, pateticamente, tentar fazer justiça com as parcas sílabas que
me sói encadear na forma de argumentos e insultos literários. De jeito
nenhum! Quando vejo perto de mim (real ou virtualmente) o dito-cujo se
regozijando com a maldade própria ou alheia, só me permito ceder à raiva
privada – àquele xingamento dito para o apartamento vazio e que talvez
se prolongue pela Eternidade, mas tomara que não.
Exige
esforço. Nunca ninguém disse que era fácil. A mim o silêncio só me vem a
muito custo – espero que não o de uma gastrite nervosa. Outro dia
mesmo, ao me deparar com a perversidade pública e mal-disfarçada de um
desses parasitas, tive ganas de gritar ao mundo o nome dele. De compor
uma crônica que deixasse clara a minha revolta. E até de procurar meios
formais de reparação – talvez a maior estupidez do nosso tempo, à qual,
ao que parece, não estou imune.
Mas
daí me lembrei dessa milenar ideia frágil: a misericórdia. Fechei os
olhos por um instante e me lembrei da voz mansa e covarde, da magreza
pachequenta, dos olhos vazios de quem alcançou a velhice sem jamais ter
saboreado um único momento de sabedoria. E entendi, numa lição que
precisa ser reaprendida diariamente, que para alguns a vida é apenas uma
sucessão de dias. “Coitado”, concluí, sem brilhantismo nem indignação. E
fui dormir o sono pesado que me é de direito.
Porque,
parafraseando o historiador e político romano Tácito, numa frase que
serve tanto para o canalha-ao-lado quanto para o líder no palanque, na
vida sempre haverá aqueles que, cercados pela mais cretina miséria moral
(e política), insistirão em chamar isso de vitória. E até de vida.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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