Como pessoas precisam umas das outras, uma longevidade que não seja democrática é uma condenação à solidão. João Pereira Coutinho via FSP:
Viver para sempre
nunca esteve entre os meus planos. Prefiro um prazo de validade mais
curto, sem o qual a vida se torna um bocejo interminável. Não logo,
claro. Passados cem ou 200 anos. Ou 300, talvez.
Chega um dia, como na peça de Karel Capek,
em que tudo já foi visto, dito e experimentado. A vida perdeu urgência
porque só pode existir urgência —para amar, para criar, viajar, perder
países— quando sabemos que não existe todo o tempo do mundo.
Sem essa urgência, nosso desinteresse é do tamanho da nossa eternidade. E sem uma porta de saída para acabarmos com a agonia.
Há quem discorde: o pessoal do Vale do Silício.
Leio no jornal Daily Telegraph que os bilionários da região adoram
certos coquetéis para prolongar a vitalidade do corpo. Injeções de
células-tronco, transfusões de sangue jovem, câmaras hiperbáricas para
dormir com o oxigênio mais puro.
Raciocínio dos bilionários: chegar aos 150 ou aos 200 (por enquanto), só em bom estado.
Concordo. De que vale ter uma idade de Matusalém quando o corpo não acompanha os aniversários?
Jonathan Swift,
nas suas "Viagens de Gulliver", deixou-nos a descrição mais bárbara
dessa ousadia ao narrar o destino dos Struldbrugg. Eles são imortais,
sim, mas essa imortalidade não vem com a juventude. Quem quer esse
destino? Quem deseja um envelhecimento sem fim? Ninguém.
Embora,
aqui entre nós, o destino dos bilionários do Vale do Silício não me
pareça melhor. Ainda que cheguem aos 150 ou aos 200 anos, confesso o meu
cansaço ao ler as terapias a que se entregam. O tempo que eles perdem
com injeções e transfusões de sangue daria, no mínimo, para que vivessem
plenamente uma vida normal. Já os imagino, no leito derradeiro,
arrependidos por todas as horas que desperdiçaram na clínica, cobiçando o
sangue jovem como vampiros de cinema.
Sem
falar de outros métodos radicais, que podem trazer consequências
indesejáveis. Como a criogenização, um processo com bastante demanda.
Tudo funciona como no "Percevejo" de Maiakóvski: o cidadão é congelado na hora da morte e depois acorda em 2145, quando existe uma cura para a doença que o matou em 2052.
Segundo parece, Paris Hilton
já reservou o seu lugar na geladeira. O que significa que uma pessoa
investe na longevidade e, em meados do século 22, tem a desagradável
surpresa de reencontrar Paris Hilton em plena atividade. Ninguém merece.
Mas
a longevidade tem outros riscos que os centenários de hoje conhecem
bem. Na mesma reportagem, encontramos Ethel Caterham, uma inglesa que
não precisou do Vale do Silício para chegar aos 112 anos. Sobreviveu a
tudo: guerras, crises, reinados. Mas também ao marido e às duas filhas.
Sobreviver
ao marido pode ser uma benesse, concedo, e não excluo que a ciência
possa ter aqui uma palavra importante: quem perdeu anos com um cretino
qualquer deveria ser indenizado em tratamentos de longevidade que
repusessem os anos desperdiçados.
Mas sobreviver aos filhos não é propriamente uma benesse. É talvez um pesadelo tornado realidade.
Eis
o ponto: nas discussões sobre o prolongamento da vida, tudo é visto de
uma perspetiva individual, como se o estado do corpo encerrasse o
debate. Ou, então, como se o indivíduo existisse sem a sua circunstância
—uma existência abstrata, que paira no éter sem ligações substanciais a
algo, ou a alguém.
Mas
os indivíduos precisam de outros indivíduos. E, entre esses, precisam
dos seus indivíduos. Uma longevidade que não seja democrática é uma
condenação à solidão.
De que vale conhecermos novos mundos quando perdemos o único mundo que nos tornou reconhecidamente humanos?
Viver
até aos 150 ou 200, tudo bem, desde que eu possa levar alguma bagagem.
Velhos amigos. Amores presentes. Irmãos, filhos e netos. De que vale
matar a morte quando não podemos matar saudades?
Se
pedirem muito, também levo a Paris Hilton. Pensando bem, sou como ela,
filho deste tempo feito de ruído, superficialidade e loucura.
Porque
o pior que me poderia acontecer era chegar a um futuro estranho e
concluir, parafraseando um narrador de Dickens, que o passado, afinal,
era o pior dos mundos e o melhor dos mundos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário