Racista é quem acha que o negro brasileiro é o Mano Brown. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Uns
anos atrás, antes de se falar em cultura do cancelamento, Eli Vieira
cunhou a expressão “in dubio pro hell” para descrever a conduta dos
ativistas. “Na dúvida, condene ao inferno”, em vez do dito latino “na
dúvida, decida-se a favor do réu.”
Há
situações dúbias em que não dá para saber se a fala de alguém foi
motivada por algum preconceito injusto. Eis é um fato outrora elementar
da vida humana que foi completamente apagado pelo ativismo dos
canceladores: as mentes dos outros são privadas, e na verdade é raro
sabermos ao certo o que passa na cabeça de outrem. Hoje é normal agir
como se todo mundo soubesse exatamente o que o outro está pensando, e
mais: todo mundo tem certeza das intenções mais diabólicas dos outros.
Não há dúvida; há a certeza da maldade.
É
sintomático que um dito latino do mundo jurídico sirva para pensar o
assunto. Afinal, julgar o caráter alheio é algo que fazemos
individualmente e na vida privada. Nesse âmbito, há convicções que não
podemos provar em juízo, nem devemos precisar provar em juízo. No
entanto, vivemos uma situação em que a suposta falha de caráter precisa
caber num tipo penal e, enquanto o Supremo não der todas as canetadas
suficientes para criar tantos tipos penais quanto queiramos, o juízo
moral precisa ser feito na internet por uma coletividade uniforme.
Esse
tribunal, à maneira do Sleeping Giants, serve para acabar com a fonte
de renda das vítimas. E como a coisa evoluiu de uns anos para cá, nem
podemos mais dizer “in dubio pro hell”. Não há dúvida. Existem
predestinados ao inferno e cabe encontrar um indiciozinho qualquer para
mandá-lo para o andar de baixo.
O mais novo caso
O
mais novo cancelado é Sílvio Navarro. Mano Brown comunica que exigirá
passaporte sanitário para o seu show. Sílvio Navarro tuíta que Mano
Brown bem poderia exigir a certidão antecedentes criminais em vez disso.
Pausa: se você está engajado na discussão do passaporte vacinal – e o
público de Sílvio Navarro está –, você sabe que volta e meia alguém
sugere uma exigência mais sensata do que o passaporte vacinal a fim de
mostrar a irrazoabilidade do passaporte. Dada a alta reincidência dos
criminosos brasileiros, faria mais sentido proteger o povo exigindo
certidão de antecedentes criminais do que as famigeradas vacinas de
covid.
Quem
é Mano Brown? Quanto a mim, me lembro dele por causa daquele esculacho
que ele deu na cúpula petista nas eleições de 2018, dizendo que o
partido não falava mais com o povão. Ele falou isso, frise-se, enquanto
apoiador insatisfeito com estratégia eleitoral. No mais, sabia ser do
Racionais MC’s, um conjunto de rap que não me dizia nada, porque não
gosto de rap. Sabia ainda que as músicas desse conjunto estavam na
bibliografia da FUVEST, porque um amigo meu, um paulista doutor em
geografia, solta fogo pelas ventas toda vez que fala da bibliografia da
FUVEST por causa disso. Pelas convicções dele, que já foram muito comuns
e são iguais às minhas, os alunos de todas as classes sociais devem
estudar língua culta, em vez de ficar com essa coisa de os mano pra lá e
os mano pra cá.
Mas
voltemos a Sílvio Navarro. Para a minha sincera surpresa, o tuíte de
Sílvio Navarro foi tido como um evidente racismo. Para minha surpresa e
também revolta, já que sou nascida e criada na Bahia e, portanto, tudo
quanto é cultura negra brasileira me toca. Se há algo que possa ser
chamado de “cultura negra brasileira” neste país mestiço, é a cultura de
Salvador (onde nasci) e do Recôncavo (onde moro). E eu não tenho nada a
ver com “os mano”, que são coisa de paulista.
No
fim das contas, como Sílvio Navarro trabalha para uma empresa que
demitiu Constantino sem pestanejar, não ligando para o fato de que ele
jamais defenderia o estupro da própria filha, ele apagou o tuíte e fez
outro, esclarecendo o que não precisava ser esclarecido e pedindo
desculpas: “O tweet anterior sobre o show do Mano Brown foi apagado. Não
tem absolutamente nada a ver com racismo ou estilo musical – e sim, a
letras sobre violência e crime. Como a mensagem não foi clara e muita
gente se sentiu ofendida, peço desculpas.”
Graças
a deus que meu custo de vida é baixíssimo. Preferiria perder o meu
emprego a escrever um negócio desses. Aí eu sigo os conselhos dos meus
vizinhos e vou criar galinha.
O rol de pressupostos
Vamos
arrolar os pressupostos que alguém precisa abraçar para chamar Sílvio
Navarro de racista. O primeiro de todos é que Mano Brown é negro. Mano
Brown é da cor de ACM Neto, que, quando se declarou pardo ao TSE, teve
que voltar atrás por causa de chilique do movimento negro. Mano Brown é
da cor de muita gente que se considera branca e está feliz, tacando
pedra em Sílvio Navarro, se sentindo salvadora dos negros. Faço um
pedido ao paladino defensor dos negros: vá ao espelho. A sua cor é assim
tão diferente da de Mano Brown? Então por que ele é negro e você é
branco? Será que o racista aqui não é você, que precisa apontar uma
terceira pessoa como “o negro”?
O
outro pressuposto é o de que a música feita pelo “negro” Mano Brown é a
música dos negros. Não o afoxé, não o samba de roda: o rap do Mano
Brown. Daí vemos o pressuposto complexo de que existe uma música negra
no Brasil, e essa música é feita por negros e para negros.
Mano
Brown – e não o Samba Chula de São Braz – faz música negra, seu público
é negro. Por isso pedir antecedentes criminais é racismo, porque só
negros vão ao show do negro Mano Brown.
Música com tema do tráfico
Já
mencionei que escritores fazem muito bem em morar perto de cabaré, pois
dá assunto. Na porta do cabaré da minha rua junta um pequeno tráfico, e
além disso há uma jukebox que toca a música que os clientes pedem. Dá
pra saber quanto o cliente é traficante por causa da música. Música de
peão é Zé Vaqueiro, João Gomes, Gusttavo Lima. Música de traficante lá é
Robyssão, baiano, e MC Poze do Rodo, carioca.
Espiar
o estilo de vida dos pequenos traficantes foi frustrante. É tudo por
mulher e roupa cara. A meta deles é juntar “muito” dinheiro (em
Cachoeira mil reais é muito dinheiro) e se tornar o “rei das cachorras”,
ostentando roupas caras (o xing-ling da Nike) e fornecendo acesso a
drogas caras (a cafeína sintética que passa por cocaína).
As
letras de música refletem isso. Robyssão canta: “Quer ganhar dinheiro
fácil e andar todo arrumado?/ Vem balançar.” E o tal MC Poze eu demorei a
identificar. Toda hora tocava um funk, mas eu não conseguia entender o
que ele estava falando para botar no Google. Felizmente ouvi esse mesmo
funk em São Paulo, passando na TV num bar em área nobre, e pude
perguntar quem era o artista ao dono do bar. Tratava-se da música “A
cara do crime”, de MC Poze. Vocês podem assistir aqui com legendas e
prestar atenção à letra, que revela algo também do estado moral da
classe média.
E
se você não assistir, eu conto mesmo assim que o MC Poze, um mulato, se
gaba de ser “pretinho”, ter cara de criminoso, ser sempre parado em
blitz e deixar os policiais furiosos, porque não conseguem descobrir
nenhuma irregularidade. Na letra o eu lírico deixa muito claro que é
criminoso, traficante, anda cheio de dinheiro e as patricinhas correm
atrás dele. Há alguns percalços, muitos querem tomar o seu lugar, os
subordinados morrem na guerra, mas tudo vale a pena. A mensagem é essa.
As
letras do Racionais MC’s são no mesmo estilo. Depois de ouvir “A cara
do crime”, passe a “Eu sou 157”, do Racionais. Ambas retratam vida de
bandido e ambas tentam dar um verniz de crítica social. No século XXI, a
sociedade não se conforma em ver o pretinho se dando bem. No século XX,
era a lenga-lenga contra o sistema. As mesmas recompensas já estavam em
Racionais: “Hoje eu sou ladrão, artigo 157 / As cachorra me ama, os
playboy se derrete.”; “Vagabundo assalta banco usando Gucci e Versace /
Civil dá o bote usando caminhão da Light”.
Devo
dizer que o MC Poze compunha música para o Comando Vermelho e foi
proibido pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia de fazer um show
em Salvador. Uma facção local ameaçava cravá-lo de balas e a polícia não
queria confusão.
Quem é racista mesmo?
Na
minha terra há muitos negros. Há negros médicos, negros juízes, negros
garis, negros traficantes. Apenas uma parcela dos negros de minha terra
aprecia músicas que, no mínimo, naturalizam o estilo de vida da
bandidagem e reforçam os seus valores.
Racista é quem acha que o negro brasileiro é o Mano Brown.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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