Além de investigação interna, a polícia também pode entrar na história das reuniões com bebidas e salgadinhos quando o reino inteiro estava no isolamento. Vilma Gryzinski:
“O
primeiro-ministro tem plena confiança em Marty”, dizia uma declaração
oficial do chefe do governo. Tradução: Martin Reynolds, diplomata que é
secretário particular de Boris Johnson, vai rodar.
É
insustentável que ele continue a sangrar no cargo depois que uma fonte
passou para o canal de televisão ITN o e-mail datado de 20 de maio do
ano passado em que convidava cerca de cem integrantes do governo a
“aproveitar o clima ótimo” e tomar uns drinques no jardim dos fundos do
sobrado número dez de Downing Street, o conglomerado onde os
primeiros-ministros britânicos moram e trabalham desde 1735.
“Tragam sua própria bebida”, acrescentou Reynolds.
O
detalhe arrasador é que, pelas regras obrigatórias então vigentes,
nenhum cidadão da Inglaterra podia se encontrar, por qualquer motivo que
fosse, fora os que continuavam indo aos locais de trabalho, com mais de
uma pessoa não-residente no mesmo domicílio. Assim mesmo, o encontro a
dois só podia ser ao ar livre e com distanciamento mínimo de dois
metros.
Alegar
que as festinhas depois do trabalho – no total, foram oito – eram na
verdade reuniões de serviço, como já foi feito quando surgiram os
primeiros vazamentos sobre vários desses encontros, não funciona mais.
Até num país onde estrangeiros ainda se espantam quando deparam com
reuniões de trabalho regadas a vinho, o argumento desmorona diante do
e-mail de Martin Reynolds, que se refere explicitamente a um
congraçamento destinado à descontração.
“Isso
é para valer?”, chegou a perguntar um dos convidados. Entre trinta e
quarenta pessoas aceitaram o convite e levaram bebidas para consumir com
um nada sofisticado cardápio de batatinhas de pacote e enroladinho de
salsicha. Boris foi com Carrie, a então companheira com quem depois se
casou de papel passado. Menos de um mês antes ela havia tido o primeiro
filho do casal, apenas uma semana depois de Boris sair do hospital onde
tinha sido internado com um caso grave de Covid-19. Talvez os dois
achassem que mereciam espairecer um pouco?
Boris
Johnson, um astuto malabarista político que explora habilmente a imagem
de bufão de cabelo despenteado, conseguirá tirar mais um truque da
manga e escapar dessa? Um escândalo que já tem até nome, “partygate”,
compromete-o irreversivelmente?
Hoje
à tarde, na sessão semanal em que o primeiro-ministro comparece ao
Parlamento e se enfrenta com o líder da oposição, ele vai ter que
abordar o assunto de alguma maneira em que não fique tão mal na foto ou
fazer um ato de contrição.
As
reações que mais importam são as de integrantes de seu próprio Partido
Conservador. Só eles, ou uma parte deles, podem usar as próprias
engrenagens do partido e pedir um voto de confiança no primeiro-ministro
– e só fazem isso com uma certeza razoável de que derrubarão um líder
desmoralizado e em seu lugar colocarão outro que, num futuro voto
popular, garanta a maioria que têm no momento.
No
fim do ano, o prestígio de Boris estava mal com a ala mais conservadora
do partido, indignada com a volta de restrições provocadas pela
reincidência da epidemia de Covid-19 causada pela ômicron.
Além
de receber em Downing Street e fazer os rapapés de praxe a
parlamentares conservadores que não integram o governo, mas poderiam ser
vozes importantes contra ele, Boris também desativou a oposição interna
ao resistir aos apelos para que adotasse medidas mais restritivas do
que a volta das máscaras a lugares fechados e a recomendação do trabalho
remoto.
As
previsões mais alarmistas não se concretizaram. Apesar da rápida
disseminação da Covid-19 o governo já estava falando que o Reino Unido
se tornaria o primeiro país a sair da pandemia, aprendendo a conviver
com o vírus como um fenômeno endêmico, que não demanda mais restrições
severas.
Durou
pouco. Agora, Boris tem uma investigação ética interna, comandada por
uma mulher com fama de durona, Sue Gray, e a possibilidade de que a
Scotland Yard entre na história. O comando da polícia também “está em
contato” com o governo sobre um outro rolo ético, o do financiamento da
reforma da ala residencial de Downing Street, bancada por um
simpatizante do partido. Esse escândalo também tem nome:
“Wallpapergate”.
Como
é praxe em momentos como o atual, o governo está dizendo que não vai se
pronunciar sobre o assunto enquanto não tiver o resultado da
investigação, o que provocou um comentário sarcástico de Gavin Barwell,
parlamentar conservador nada simpático a Boris (era da turma de Theresa
May, catapultada de Downing Street por ele).
“Não
está nada claro por que o primeiro-ministro precisa esperar a
publicação do relatório de Sue Gray para averiguar se ele esteve numa
festa em seu próprio jardim”, tuitou.
Se
integrantes do seu próprio partido o tratam assim, imaginem a oposição
trabalhista. Isolado em casa pela sexta vez – duas por contrair o vírus e
quatro por contatos próximos -, o líder do Partido Trabalhista, Keir
Starmer, praticamente não precisa fazer nada para ver o adversário
desmoronar.
Se
a eleição fosse hoje, os trabalhistas, tão surrados nas urnas por
Boris, teriam 39% dos votos e os conservadores, 34%, mais 11% para os
liberais democratas.
Mas
eleição será apenas em maio de 2024. Para tirar Boris do governo, só se
uma reação muito, muito forte da opinião pública levar pelo menos 55
parlamentares a pedir a uma comissão interna do partido que leve a
votação uma moção de não-confiança.
Mesmo
que o voto não passe, o chão pode desaparecer sob os pés do chefe de
governo. Foi o que aconteceu com Margaret Thatcher em 1990. Ela derrotou
o voto de censura, mas viu que a maré tinha virado.
Chamou
seu cabeleireiro às pressas a Downing Street para armar o capacete
louro com que enfrentava mundo e foi fazer um discurso de despedida na
Câmara. Formidável e freneticamente aplaudido pelos homens que haviam
acabado de apunhalá-la pelas costas, incluindo Michael Heseltine, que se
imaginava o substituto, e John Major, que acabou ganhando a disputa
interna.
“O
primeiro-ministro não está indo a lugar nenhum”, disse na Câmara um
integrante do governo, Michael Ellis. “O primeiro-ministro conserva a
confiança do povo desse país, como fez há dois anos, com a maior maioria
em décadas”.
Tradução:
a posição de Boris não é nada boa e tem um bocado de gente em cima do
muro esperando para ver se é a hora de sacar os punhais e partir para o
ritual do expurgo interno.
Pesquisa mais recente: 66% dos consultados acham que Boris deveria renunciar, 24% são contra.
Quase dá para ouvir os punhais sendo afiados.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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