Em Portugal, quer o Ministério da Educação que as crianças, desde o pré-escolar, duvidem da biologia, desconstruam “estereótipos de gênero” e descubram a sua “identidade de gênero”. Está tudo online. José Maria Cortes para o Observador:
A
ideologia de género tem a seu favor o facto de ser absurda. Uma ideia
ser absurda parece tão, tão absurdo, que facilmente acreditamos que quem
está errado somos nós, não a ideia. O absurdo beneficia, por isso, de
uma benesse negada ao óbvio, e que nos assombra desde que um conjunto de
equações num quadro explicou os eclipses e pôs o homem na lua: a
admiração pelo incompreensível, esse incenso que ofertamos a quem nos
diz ver melhor que os nossos olhos.
Tramou-nos
isso e outra coisa. A ideia de que as ideias são inofensivas, a qual,
para além de ser uma ideia, portanto perigosa por natureza, é perigosa
por experiência. Espreguiça-nos a vontade e relaxa-nos o intelecto,
refastelados na certeza de que pensar é só pensar e ninguém se magoa. É
uma espécie de dualismo gnóstico, uma dessas tentações que, derrotadas
numa geração, logo aparecem na seguinte com um nome diferente. Uma certa
visão da relação entre a matéria e o espírito, o corpo e a mente,
segundo a qual estes são não só distintos, mas separáveis, ao ponto de
uma pessoa, uma comunidade inteira, poder acreditar numa coisa e viver
como se não acreditasse. Esta ideia explicará que uma sociedade como a
nossa, assente em milénios de religião cristã e de (alguma) filosofia
sã, não tenha antecipado a derrocada do consenso que murava a natureza
do homem e da mulher.
Não
é que não se soubesse já. Quem estava atento sabia que uma coisa
chamada “Teoria de Género” possuía a Academia, como um espírito mau,
levando-a a desconfiar da biologia e, nesta, dos seus próprios olhos.
Sabia-se também que a desconfiança lançava raízes profundas, puxando de
uma filosofia descrente da possibilidade de conhecer a realidade, da
possibilidade de usar os olhos como olhos e não como lentes. Mas havendo
quem soubesse, poucos temiam. Anestesiou-nos a ideia de que, apesar de
tudo, eram só ideias. E quando estas nos bateram à porta das casas e das
escolas, lembrámo-nos daquela verdade velhinha. A de que uma ideia,
como o azeite em água, não deixa de vir à tona.
Voltando
à ideologia. Que bicho é? Não é a defesa da igual dignidade entre o
homem e a mulher, nem uma forma de combate à discriminação. Longe disso.
Não é também, ainda que pareça, o viveiro dos pesadelos de um certo
reacionarismo que despeja no termo as alergias que tem à modernidade, do
inverno demográfico ao facto das mulheres usarem calças. Não é isso: é
uma coisa, com um conteúdo. Poderia dizer-se que é a proposta da
existência do “género”, o objecto de uma identificação mental com os
conceitos “homem”, “mulher” ou algo pelo meio, sem vínculo ao sexo. As
possibilidades de identificação seriam infinitas. Fala-se em “espectro”,
que se jura não ser fantasma.
Mas
não pode ser só isso. Se fosse, a ideia ficaria pelo óbvio (e o óbvio,
como já vimos, não convence). Realmente, desde que há registo, sempre
houve quem se identificasse com outra coisa. A medicina chamou-lhe
“transexualismo”, depois “disforia de género”. Que essa identificação
possa existir não é então o que distingue. O que será único é a ideia de
que a identificação é o identificado. Ou seja, a ideia de que um homem
que se identifica como mulher não é um homem que se identifica como
mulher, é uma mulher. No mais da vida, diz-nos a sanidade que não basta
achar que se é para se ser. Para o “género”, abre-se uma excepção. É
passar a identificação de lateral para central, de acidente para
substância, de distúrbio a tratar para identidade a celebrar, que está
no coração desta ideia.
Daqui brotam mil contradições
para os activistas. Ficam algumas. Por um lado, o género é apenas uma
construção, social ou mental, e, por outro, uma pessoa pode estar
“presa” no género errado. Dizem que não há diferenças significativas
entre o homem e a mulher, mas usam estereótipos sexuais rígidos para
basear a “identidade de género”. Dizem que a verdade é o que o sujeito
diz que é e, ao mesmo tempo, acreditam que existe um “eu” de verdadeiro
género por descobrir, que o sujeito recebe, sem criar. Se o género é uma
construção, como pode a identidade de género ser inata e imutável? E se
a identidade de género é inata e imutável, como pode ser “fluída”?
Os
intérpretes de boa vontade tentam encontrar coerência na coisa, a chave
que harmonize. Há quem diga que, bem lá em baixo, a Teoria de Género é
uma rejeição da metafísica, e há quem diga que é antes uma nova
metafísica. Há quem lá veja um subjectivismo radical e há quem lhe
aponte um novo objectivismo, que eleva os estados mentais ao estatuto
das pedras e árvores e demais coisas que nos entram pelos olhos adentro.
Acontece que a tentativa de encontrar o postulado sobre o qual assenta a
ideologia e que a torna clara, coerente ao menos, ignora que a clareza,
a coerência, não são o ponto.
Como
em tudo, conhecer os pais ajuda. A filiação imediata – e acertada – da
ideologia é com o pós-modernismo, em particular com Michel Foucault e a
canónica Histoire de la Sexualité e, mais recentemente, com Judith
Butler e sua Theory of Gender Performativity. Deste lado vem a tese de
que tudo, incluindo isto a que chamamos “homem” e “mulher”, é
determinado pela linguagem e pelo poder.
Há
outro ancestral, menos evidente mas talvez mais determinante. Filha
fiel da Teoria Crítica (Horkheimer, Adorno, Marcuse e outros), a Teoria
de Género bebe-lhe a ideia de que não é procurando conhecer a realidade,
ou soluções para os seus males, que se deve pensar. Se o objectivo
fosse conhecer ou melhorar, haveria coerência, não contradição no
mínimo. Mas o programa é outro. A premissa é a de que toda a realidade é
negativa, carregando mancha indelével da opressão. O ponto de partida
não é, por isso, o espanto dos antigos, a revelação dos escolásticos,
nem sequer (é um erro comum) o desejo utópico dos modernos. Não é o
fascínio por esta realidade, já nem a espera utópica por uma outra: o
que os anima mesmo é a total rejeição de tudo (ou, como lhe chamou
Marcuse, The Great Refusal ou the protest against that which is).
O “pecado original” da realidade é de tal ordem que tudo o que esta
inclui, a cultura, a língua, a lógica, a natureza humana, tudo deve ser
desmontado. A esperança é a de que, das cinzas da devastação, nasça algo
melhor. Mas o objectivo imediato é a desconstrução, não a solução. O
programa, na verdade, é não ter programa. É assim como quando os meninos
pequeninos, embirrentos, tiram os brinquedos dos outros meninos só para
estes não brincarem. É tirar por tirar, destruir por destruir. É a
Grande Birra com a realidade.
Nisto,
a Teoria de Género obedece à Teoria Crítica. Mas como sua variação
específica, que acrescenta? Se a tese é a substancialidade do género, o
alvo seria o sexo. Mas não é. O verdadeiro alvo não é (só) a afirmação
de que se nasce homem ou mulher. Essa distinção, ainda que negada, é
pressuposta. Nenhum homem quereria ser mulher se não reconhecesse que
nasceu homem. Tão pouco, para o conseguir, faria tanto para parecer
mulher se não tivesse uma imagem clara do que é ser mulher.
O
nó dá-se antes no embate entre o que uma pessoa quer ser, e o que todas
as outras conseguem ver. O ponto não é a negação da distinção entre
homem e mulher, mas sim o desejo de vergar a percepção humana. De levar
cada pessoa a dizer que vê o que não vê, que acha ser o que sabe não
ser. É que se basta dizer-se mulher para o ser, a percepção imediata
passa a obedecer a um fiat de fora. Invertida por sufoco social, já não
vai do objecto para chegar ao nome, mas vai do nome para ofuscar o
objecto. E para quê? Para que todos, uma cedência de cada vez, nos
habituemos a negar o que vemos.
Porque
o objectivo é esse e não o de oferecer uma metafísica alternativa, os
activistas maquilham a sua antropologia com uma boa dose de “medicinez”.
Parecem saber que, se a discussão fosse travada onde deve – no plano
filosófico -, as contradições logo apareceriam. Para tal cooptaram, com
uma eficácia arrepiante, grande parte das instituições “respeitáveis”,
que agora enterram as suas preferências ideológicas sob frases e frases
de lero-lero pseudo-científico. Um exemplo recente veio da Associação
Americana de Psicólogos, que decretou que a “masculidade tradicional é danosa”. Segundo consta, a sentença foi encontrada do outro lado de um microscópio.
E
o mal de tudo isto? Crianças angustiadas. Taxas de suicídio alarmantes
entre as pessoas que se identificam como “transgénero” – as verdadeiras
vítimas. Os dados médicos sugerem que a dita “mudança de sexo”, química
ou cirúrgica, não ajuda. Mesmo quando as operações são cosmeticamente
“bem-sucedidas”, e mesmo em culturas favoráveis à sua opção, os
problemas destas crianças mantêm- se. O estudo mais rigoroso que temos
do fenómeno, realizado na Suécia durante trinta anos, documenta que a aflição mental das vítimas dura toda a vida. Dez a quinze anos depois da cirurgia, a sua taxa de suicídio é vinte vezes superior à dos seus pares.
E
se as crianças “transgénero” são quem mais sofre, as outras também
pagam. Em Portugal, quer o Ministério da Educação que as crianças, desde
o pré-escolar, duvidem da biologia, desconstruam “estereótipos de
género” e descubram a sua “identidade de género”. Está tudo online.
Veja-se: isto significa que hoje, em Portugal, desde os três anos, os
meninos são levados a duvidar de que são meninos e as meninas a duvidar
de que são meninas. Estes são os frutos da ideologia. Que as birras das
crianças chateiem os adultos, é normal. Que as birras dos adultos magoem
as crianças, é muito, muito mau sinal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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