Para o intelectual conservador Francis Fukuyama, pode surgir uma "nova cepa" do populismo de direita no mundo. Ele afirma, também, que a reeleição de Bolsonaro seria "destrutiva" para o Brasil, assim como a volta de Lula. Entrevista ao jornal O Globo:
Três
décadas após decretar “o fim da História”, o especialista em relações
internacionais Francis Fukuyama, da Universidade Stanford, uma das vozes
conservadoras mais conhecidas da academia americana, vê um 2022 marcado
pela crescente decadência dos EUA, pelo avanço do totalitarismo
representado pela aproximação de China e Rússia, pelo aumento da
polarização política na América Latina e pela emergência de uma nova
cepa do populismo de direita, alimentada por um conceito enviesado de
liberdade de expressão, como reação à indefinição sobre o fim da
pandemia da Covid-19.
“O
fim da História e o último homem” foi escrito logo após o desmonte do
comunismo na Europa Oriental, com a tese de que as democracias liberais
se solidificariam mundo afora, o que não aconteceu. Como vê os EUA no
atual tabuleiro político planetário?
Houve
um inegável declínio da influência americana. As razões são muitas, mas
as principais se relacionam com os erros políticos cometidos por
Washington de lá para cá, especialmente a invasão do Iraque e a crise
financeira global de 2008. Foram dois momentos históricos que
desacreditaram nossas elites e as ideias que as guiavam. Hoje a maior
fonte de fraqueza dos EUA é o grau jamais visto de polarização política
em um país cada vez mais partido. A política externa, especialmente,
carece do mínimo de consenso entre democratas e republicanos, crucial
para a defesa de uma ordem global democrática. Nosso retrato como país
hoje é o de uma entidade anômala e isso me faz crer que a decadência
americana vai aumentar nos próximos anos.
Quais serão os maiores pontos de tensão no planeta em 2022?
Certamente
Ucrânia e Taiwan, e não apenas no próximo ano. Estes serão os dois
centros nervosos da disputa entre as democracias liberais e os regimes
totalitários. Se os EUA nada fizerem para proteger Kiev, a decadência
americana será ainda mais acelerada. O que deveríamos fazer no caso da
Ucrânia é parar de considerar uma possível entrada do país na Otan e
tornar mais difícil uma invasão russa, com ações concretas, com apoio
militar que ofereça aos ucranianos a possibilidade de se defenderem de
uma agressão militar. Pequim está prestando enorme atenção a como o
mundo ocidental responderá a uma possível invasão. Se não enfrentarem
Putin, uma invasão de Taiwan se torna mais possível. A conexão
Pequim-Moscou é definitivamente um movimento chave no xadrez global.
Ficou mais nítido o quilate de ordem mundial que eles gostariam de
estabelecer.
Depois de quase dois anos de pandemia, o que devemos esperar de 2022?
O
efeito mais palpável da pandemia foi o aumento de nossa dependência do
universo digital, nos negócios, na educação, nas conexões pessoais, e
estas mudanças vieram para ficar. A verdade é que aprendemos e gostamos
da tela entre nós. Observaremos uma pressão cada vez maior para que esta
extensão de nossos corpos e mentes se perpetue, com suas consequências,
positivas e negativas. Mas o que não sabemos ao certo, especialmente do
meu ponto de observação [com um forte movimento antivacina, os EUA
ainda convivem com alto número de mortes por Covid-19], é quando a
pandemia irá de fato acabar. O que posso cravar de antemão como uma das
características de 2022 é justamente essa incerteza. A pandemia está se
estendendo mais do que os mais pessimistas previam. O que mais me
preocupa são as consequências políticas dessa indefinição.
Pode dar exemplos?
A
extensão da pandemia pode desestabilizar politicamente países,
incluindo os nossos. Precisamos observar o efeito que ela terá no curso
dos populismos. Constatou-se numericamente uma relação clara entre
governos comandados por populistas e a dimensão da tragédia da Covid-19.
Houve, como consequência, o enfraquecimento de governantes como Donald
Trump e Jair Bolsonaro. Porém, não me iludo: 2022 seguirá seu curso, as
pessoas se esquecerão, mês a mês, semana a semana, da tragédia. O Ano
Novo começa com um sentimento de esgotamento e ansiedade compreensível:
passamos 2020 e 2021 usando máscaras, isolados, nos vacinando. O que
temo é que a reação, especialmente à direita, contra as medidas
sanitárias, modifique o cálculo político, oferecendo a oportunidade de
um novo tipo de populismo, calcado em uma falsa ideia de liberdade de
expressão.
A
discussão em torno da vacinação de crianças contra a Covid-19 que se vê
hoje no Brasil já é um reflexo desta nova cepa de populismo de direita?
Sim.
É legítima a preocupação dos pais em o Estado usar a emergência
sanitária para interferir em decisões que afetam as famílias. Mas a
realidade é bem outra e mais sinistra. Cultua-se a desconfiança do
conhecimento científico e há a invenção e divulgação de teorias da
conspiração sobre agências de vigilância e a indústria farmacêutica.
Em
2018, o senhor argumentou em “Identidades: a exigência da dignidade e a
política do ressentimento" que há uma conexão direta entre a defesa
feita por progressistas das políticas identitárias e a ascensão do
populismo de direita. As democracias liberais seguirão em risco?
Sim.
Em abril lanço “Liberalism and its discontents”, examinando como as
pessoas foram ficando mais infelizes com o modelo de democracia liberal
nos últimos 50 anos. A nova esquerda combate diversos tipos de
desigualdade, não apenas os de classe e econômicos, mas os de gênero,
raciais e de orientação sexual. E isso seguirá alimentando uma direita
decidida a enfrentar o que percebe ser um ataque a suas tradições
culturais e religiosas.
O
Brasil irá às urnas este ano e as pesquisas indicam uma polarização
entre forças que representam, também, estas tensões. Como o senhor vê
uma disputa entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula?
A
reeleição de Bolsonaro seria o equivalente a uma segunda Presidência de
Trump nos EUA, a celebração coletiva de um líder muito fraco e
incompetente. Um segundo mandato de Bolsonaro será ainda mais destrutivo
para a democracia brasileira. A escolha oferecida, no entanto, me
parece estar longe do ideal: faz todo sentido votar em qualquer pessoa
que não se chame Bolsonaro, mas Lula representa um passado recente que
inclui escândalos sérios e volumosos de corrupção. A disputa também
parece acentuar a diminuição da importância dos centros e o
fortalecimento da polarização, dos extremos, como aqui nos EUA, que
parece ser uma tendência na América Latina para os próximos anos, como
observamos no Peru e no Chile. Isso me preocupa muito.
Mas
Gabriel Boric se aproximou do centro no segundo turno das eleições
chilenas e a política ambiental teve protagonismo em seu programa de
governo. A consciência verde não terá o poder de aproximar os extremos?
Ela
deveria, mas ainda não vejo no horizonte o combate lógico e urgente ao
aquecimento global como fator na redução da polarização política. Em
2022, estaremos distantes de um consenso sobre como preservar a natureza
sem explorar de forma irracional as riquezas naturais. E muito ocupados
discutindo tópicos como o aumento de impostos, se é direito ou dever
sermos vacinados e o culto à desinformação para nos unir na defesa do
verde.
Sobre a disseminação de fake news, o senhor acredita que haverá mais pressão pela vigilância das big tech?
Este
é um processo inevitável e não se refere apenas às redes sociais, mas a
todo universo digital. Houve uma multiplicação de universos
alternativos em que as pessoas discordam não apenas a respeito de
conceitos mas de fatos. Precisamos encontrar uma maneira de regular o
mundo livre das redes sem bater de frente com valores intensificados
pelas próprias características centrais do mundo digital, como a
liberdade de expressão. Tão importante quanto denunciar as fake news
será construir uma maneira legal para fazê-lo sem assumir o manto do
censor, do totalitário. Este ser á um dos desafios centrais de 2022 e
dos próximos anos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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